30.1.04

Tempo perdido

Como tipo da Classe Média que sou, vivo intensamente o trânsito. Alinho de bom grado na joy of commuting. Encaixotados na nossa viatura, é fácil analisar estatísticas sobre a natureza humana, contando e catalogando carros. No trânsito, temos uma panóplia de metáforas redutoras que podemos utilizar para extrapolar conclusões sobre o mundo. Afinal de contas, vistos do posto de condução do tipo que circula ao nosso lado, é comum não sermos mais do que uma cor, um valor de mercado, um modelo, uma posição das mãos no volante, uma manobra perigosa tipificada, etc. A tal estrutura do real, é muito menos transcendente. A hora de ponta, acaba por ser uma banalização filosófica.

29.1.04

Factos inúteis que aprendi à hora do almoço

"Diz que" em Portugal existem mais revistas sobre ponto de cruz do que em Espanha, e que nos Estados Unidos há uma "igreja" que ajuda casais homossexuais a adoptarem primatas de diversas espécies.

Proletariado

Sempre me incomodou o discurso do proletariado contra o patronato, instrumentalizado pelas centrais sindicais, na sua vertente fiscalista. O mexilhão acusa as "entidades patronais" de fugirem ao fisco, reclamam contra a situação discriminatória em que se encontram, prisioneiros de um sistema onde apenas "os ricos" podem ignorar as suas obrigações fiscais. Eu percebo a indignação. Muitas vezes senti a tentação de me juntar a eles, e reclamar a igualdade de oportunidades. O mexilhão não quer que os patrões paguem, quer é que lhe seja dada a possibilidade de não pagar. Parece-me justo.

Embirrações

No programa "Eterno Feminino" (Quartas-feiras, na Antena 1, à meia-noite) de ontem, uma das senhoras, transpirando o seu feminismo sofisticado de tia com muito tempo livre, dizia que já não tinha pachorra para a figura da jovem formada em filosofia, que não gosta do que escreve, e que não sabe o que quer da vida, do "Lost in Translation". Realmente, vendo a personagem isoladamente, ela presta-se a um crítica deste tipo. No entanto, em bom rigor, no filme, a Charlotte não existe, assim como não existe o Bob. Existe apenas a aproximação entre os dois. Não são relevantes individualmente, são relevantes como duo, impelidos um para o outro pelo vazio que os envolve. O papel principal é desempenhado por uma silenciosa sedução, e nesse aspecto o filme é intocável.

Woody

Finalmente um filme bom do Woody Allen. Não sendo, em absoluto, genial, não tendo a tirada brilhante, não tendo um Robin Williams desfocado, é um filme bom, do Woody Allen. É claro que tem todos os clichés do realizador que se tornaram a sua imagem de marca, é claro que é fácil achar que é mais do mesmo, que é um parente pobre do que o Allen já fez em tempos idos, mas o que eu apreciei foi exactamente isso: os tempos idos ameaçavam não voltar, mas afinal voltaram. Hoje em dia, tenho tendência a gostar cada vez mais de entretenimento de qualidade, em detrimento do avanço estético cinematográfico, e este filme encaixa-se perfeitamente na primeira categoria. Ou, como dizem no filme, it's like anything else.

28.1.04

Determinismo

Dou por mim, com alguma frequência, a deitar-me relativamente cedo e acabar por apagar a luz já de madrugada, numa tentativa inconsciente de atrasar a chegada do dia seguinte, de viciar o ritmo infernal da passagem dos dias. Nestas alturas, lembro-me do cinismo de um amigo meu que, a cada aniversário, diz simplesmente: «Menos um».

27.1.04

No trânsito

Hoje de manhã, fui surpreendido por um beijinho mandado por uma senhora já com demasiada idade para sobreviver sozinha no trânsito, depois de eu lhe ter dado passagem quando nada fazia prever que isso acontecesse. Afinal de contas, estávamos em plena hora de ponta. Como em qualquer guerra, um acto de misericórdia é sempre recebido com emoção. Logo a seguir, vejo um autocarro da Carris, prisioneiro de uma fila de carros e condutores em fúria, apinhado de gente de tonalidade cinzenta com um semblante que fazia crer que iam todos a caminho do velório do Feher. A Lisboa moderna definitivamente não foi feita para ser habitada, só contemplada.

Vazio

Talvez seja lamentável, mas fiquei relativamente indiferente à morte do Feher. Se calhar é porque não a vi em directo. Se calhar é porque não sou do Benfica. Se calhar sou simplesmente uma besta. O que me incomodou verdadeiramente foi a violência para com os que ficaram para trás. De um momento para o outro, o vazio instalou-se na vida deles, o vazio e o esterco mediatizado. O que fica depois da morte sempre me impressionou muito mais do que a morte em si.

Chorar

Para quem está à sua volta, alguém que chora é como um cadáver: não há amparo possível para a sua queda desesperada.

26.1.04

Tóquio

As viagens a países longínquos onde, após vinte horas de avião, deixamos de conseguir comunicar com o mundo à nossa volta, transformam-se rapidamente numa viagem interior, onde a paisagem que nos rodeia não passa disso mesmo, de uma paisagem, desempenhando passivamente a função de evocar sentimentos, reflexões. O que nos envolve surge como um conceito abstracto onde as únicas coisas que podemos tocar somos nós próprios. Tóquio, no Lost in Translation, é o exemplo acabado dessa distância incontornável.

23.1.04

Abandonos II

No final duma relação, as âncoras emocionais que deixámos em casa da nossa cara metade moribunda, desempenham um papel que tem como equivalente cinematográfico aquela pergunta "Eu tinha decidido que era à melhor de três ou de cinco?", na cena onde uma rapariga (ou um rapaz) se interroga se há-de telefonar à contraparte, após uma discussão, e usa o resultado do lançamento à distância de uma folha de papel amachucada para dentro de um cesto de papéis, como mecanismo de decisão. Dá-nos uma última oportunidade de questionarmos as nossas motivações, sem sermos abertamente indecisos, ou mesmo abertamente humanos. Afinal de contas, só vamos reviver a dor do reencontro porque precisamos desesperadamente daquelas calças de fato-de-treino que comprámos em 1987...

Abandonos

Por mais superficiais que sejam as nossas relações, não conseguimos evitar deixar coisas em casa uns dos outros, que nos obrigam a um retorno final ao local do crime, depois da separação. Abandonamos pertences em territórios alheios, como uma forma de investimento na relação, de declaração de intenções, de materialização de laços apenas existentes no domínio precário dos afectos. Ninguém gosta de reconhecer que o fim está à vista, muito menos que a relação está condenada à partida.

22.1.04

Preço de amigo

O conceito de preço de amigo está alicerçado numa coisa simples: pensamos instintivamente que os nossos amigos não podem ser competentes. Se estamos a recorrer aos serviços deles, estamos a fazer-lhes um favor e não uma escolha racional, o que merece ser recompensado com um desconto. Quando optamos pelos serviços de um desconhecido, isso já não se passa. Só fazemos esta opção quando embarcamos na aparência de competência que nos vendem, e aí o que exigimos é um serviço de qualidade, não um desconto.

Este conceito pode ter diversas implicações relativamente à maneira como vemos os nossos amigos, que se aplicam igualmente a nós próprios. Como aceitar a competência de alguém quando temos o conhecimento intímo de uma série de podres seus? Como é que alguém pode ser um bom advogado ou pedreiro se, nos tempos da faculdade, pintou de vomitado as ruas do Bairro Alto ao nosso lado, se se envolveu sexualmente com a rapariga mais sebosa do liceu, ou ainda se gosta de oferecer a sua cama a crianças, porque partilhar o amor é a coisa mais bonita do mundo? Vendo bem as coisas, um desconto é mais do que merecido, mesmo que seja fruto de chantagem emocional.

Os limites da civilização

Comprei um guia de sobrevivência das SAS. O livro é mais exótico do que útil, já que não tem uma secção sobre sobrevivência em cidades do primeiro mundo ou no mercado de trabalho. De qualquer forma, dum ponto de vista académico, ensina-nos coisas curiosas como a composição de um kit de sobrevivência, que deveria estar sempre ao nosso lado, assim que o telemóvel deixa de ter rede.

Nesse tal kit, uma peça essencial é o preservativo. O selvagem urbano pensaria logo que isso era óbvio, mas neste caso, o dito contraceptivo seria indispensável pela sua capacidade de armazenamento de água (cerca de 1 litro). Além disso é leve, e não ocupa espaço. Realmente, é curioso como o mesmo objecto pode ser necessário de formas tão distintas, mas sempre com a mesma finalidade, consoante o lado da fronteira civilizacional onde nos encontramos.

21.1.04

Preferências

Gosto de ler pedaços de vidas, résteas de emoções, migalhas de paisagens. Neste gosto por um certo voyeurismo bucólico, os fragmentos soltos vão-se unindo, ganhando aos poucos uma nova vida: a minha. São resgatados do limbo onde foram colocados após o abandono criativo.

Estilo

«Estilo é uma pena no chapéu de uma mulher.»
Le Corbusier

Esta paráfrase sexy da expressão "Deus (ou o Diabo) está nos detalhes" parece-me bem mais interessante: menos religião, menos dúvidas interpretativas quanto à moralidade subjacente ao dizer, abertamente sensual e diletante.

20.1.04

Novos relacionamentos

Hoje em dia, mais importante do que saber quem são os nossos melhores amigos, é saber que números de telefone levaríamos para o "Quem Quer Ser Milionário".

A 2:

Até agora não tenho grandes razões de queixa da 2:, até porque nem tenho tido grande oportunidade para a avaliar. Apenas algumas observações:

- Mas afinal onde estão os filmes?
- A rapariguinha que interpreta a Lisa no "Sete Palmos de Terra", e mesmo a Lisa como personagem do inferno que é, estão a impedir-me de ser objectivos em relação à série. Acho que se a visse na rua, tinha que lhe bater. De qualquer forma, nos dois episódios que vi até agora, parece-me que algo (de bom) se perdeu nesta transição para a 2:.
- Algures entre a qualidade de som e imagem de 1982 e o cenário de 1998, estão perdidas a Anabela Mota Ribeiro e a sua vontade tolinha de ir fazer cultura a seguir à gravação do programa. Ela hoje, em vez de ir ler um livro de poesia ou dançar, podia ir fazer uma coisa que também está em voga nos tempos que correm: exigir mais meios. Apesar de tudo, entre o Acontece e o Magazine, que venha o Magazine. Ao menos neste novo programa, apenas a logística de suporte é anacrónica.

19.1.04

Transferências

Resolvi reconsiderar os meus links, e organizar umas transferências de clube: as namoradinhas da blogoesfera e o maradona passam para a Alta Sociedade (peço desculpa), e o implacável João Miranda para as Ambivalências. Assim vai a minha vida...

Arte de fim-de-semana II

No documentário que se seguiu, era o pintor António Sena o visado. Ele afirmava que o mais frequente era o título das suas obras ser "Sem título" porque não gostava de dar orientações interpretativas. Afirmava também que não expunha há uns anos porque não encontrava um espaço adequado às suas obras actuais (pois...).

Face à falta de orientação interpretativa, obviamente senti-me completamente estúpido a olhar para as suas obras. Felizmente há sempre um conjunto de académicos que, através de um discurso convictamente complexo, se disponibilizaram para passar o resto do documentário a suprir essa lacuna, e a orientarem-me em direcção a uma compreensão plena do que estava a ver (ou talvez não).

Visto do mundo real, aquele círculo parece-se perigosamente com um engodo onde alguém que cria qualquer coisa, alimenta um grupo de explicadores, que através das suas explicações conferem valor à criação inicial, demonstrando por A mais B que essa criação é única, vendendo-a ao leigo e alimentando por sua vez o criador.

Arte de fim-de-semana I

Ontem fui ver um documentário sobre a Fernanda Fragateiro chamado "Lugares Perfeitos". Na minha mediania (e talvez ignorância), acho que os bastidores do processo de criação artística são essencialmente ridículos. Fiquei a saber, entre outras coisas, que a Fernanda se interessava por trazer o público e o tempo para dentro das suas obras, por planos horizontais e por superfícies reflectoras. Como dizia uma amiga que me acompanhou: no limite, tudo pode ser o que nós quisermos, basta acreditar nisso com convicção. No final do documentário, uma pergunta não me saía da cabeça: mas afinal qual é o objectivo disto tudo?

16.1.04

Dúvida do dia

Parece que um grupo de apoiantes do Vale e Azevedo foi multado por escrever ao juíz do caso. «Foste bom e tramaram-te!» dizem eles. Está certo. Só tenho mesmo uma pergunta: um apoiante do Vale e Azevedo apoia o dito exactamente no quê?

Acabamentos de luxo?

Passo. Gostava mesmo é que a minha casa fosse estanque, que não me incomodasse e que viesse da fábrica o mais simples possível. Eu depois encarrego-me de a desequilibrar.

Anywhere out of the world


No War Prayer, New York, NY

Em geral, não sou grande adepto de místicas citadinas e fico supreendido com algumas debandadas generalizadas (como a que tem ocorrido nos últimos tempos em direcção a Barcelona) baseadas precisamente nessas místicas. Com Nova York é diferente. Não consigo deixar de pensar que aquela gente viaja mesmo numa nave espacial muito própria.

15.1.04

Já agora...

Reparei que ficou por esclarecer um elemento fundamental no primeiro post de hoje: a Carris não tem uma carreira nº 69. Nunca tiveram. Enfim, cada um sabe de si.

Lutas simbólicas

Neste blog, luto sobretudo contra a "forma tónica da 1ª pessoa do singular, que desempenha a função de sujeito", vulgo eu, e contra o "sinal de pontuação que indica a menor de todas as pausas e serve para separar certos membros de uma frase", vulgo a vírgula. Aqui, a língua portuguesa apresenta-se em modo cavalo selvagem: por muito bonita que seja, para já, eu gostava mesmo é de a meter num picadeiro...

Orgulho

Hoje de manhã, o locutor da Radar (97.8 FM) ligou para a Carris para saber se existia uma carreira nº 69. A pessoa que o atendeu apresentou-se como Telefonista Dias que, por incapacidade de resposta, passou a chamada para uma segunda pessoa, o Sr. Coordenador de Tráfego, que só desvendou qual a sua função depois do locutor se identificar, e nunca chegou a revelar o nome. Há uns dias, um tipo que queria ser milionário, apresentou-se imediatamente como funcionário público, quando lhe perguntaram qual era a sua profissão (posteriormente lá admitiu com alguma vergonha que, dentro do funcionalismo público, desempenhava uma função concreta: era bibliotecário).

Vejo com agrado o orgulho com que o funcionário público anuncia a sua condição, em muitos aspectos, invejável. Aparentemente até a sua identidade se dilui na nobre função de nos servir a todos, funde-se no carácter colectivo do seu empregador.

14.1.04

Vinganças

O estrangeirado de Londres, na sua exilada condição, queixa-se de uma dolorosa portugalidade inerente a alguns dos meus posts sobre recantos viciosos de Lisboa e promete vingança pelo saudosismo causado. Acho que ele não está a ver bem a coisa: se blogs como o dele nos relembram todos os dias da pequenez da nossa horta, quem é que se deveria vingar? Acho que, no mínimo, estamos quites...

Boicote

Nas FNACs e VCs deste nosso Portugal não há maneira de comprar o que queremos, quando queremos, aos preços que queremos. Não gosto de ter que perseguir a pouca cultura que, a custo, me vou esforçando para adquirir, quando ela pode facilmente vir até mim. Como só posso ser "artista" em horário pós-laboral, a demanda cultural tem que ser sobretudo prática e proveitosa, logo, quando entro numa loja com horários alargados e estacionamento fácil, gosto de encontrar dez discos que me poderão interessar e não um ou dois que não comprei na minha adolescência, e que agora apenas têm algum interesse histórico.

Sendo assim, resolvi boicotar a compra de discos em território nacional (excluindo música portuguesa e brasileira, por razões óbvias), e aderir à modalidade online. Vou-me informando do que anda por aí, juntando à minha wish list e, num laivo de alarvidade, encomendo um também decorativo, monte de CDs. Quanto à parte humana da experiência, cheguei à conclusão que, neste caso, é mais embaraçoso do que útil ter alguém a atender-nos.

Confusões II

Quando anunciamos, com algum orgulho, que estamos a ser umas bestas, não deixamos de o ser. Passamos a ser umas bestas (ao) quadradas. Ou como diz um amigo meu: «Se sabes que vais fazer merda, então não podes fazê-la».

Nota: Não percebo porque razão nos links para posts antigos deste blog, ao sermos redireccionados, o que aparece no topo da página é apenas a linha da assinatura (onde está o permanent link) e não o post em si. Se alguém tiver ideias sobre o tema, aceito ajudas. Obrigado.

13.1.04

Na esquina

Uma prostituta, nos seus quarenta e muitos anos, fez de seu posto de trabalho uma das esquinas do liceu Maria Amália. Nos intervalos entre confissões, ela canta o fado, orgulhosamente só. Já me interroguei várias vezes sobre o que levaria um homem a optar por aquela senhora e não pela loira do leste, que se instalou uns metros mais acima. Foi aí que me veio à cabeça, como possível justificação, a tal materna doçura e a saudade de um tempo em que também Portugal estava orgulhosamente só, e que só aos poucos vai acabando, mesmo em Lisboa.

Talk Radio

Gosto de talk radio e tenho pena que em Portugal não haja mais programas de qualidade nestes moldes. Aqui há uns tempos alertaram-me para os programas de conversa da Antena 1, todos os dias, à meia-noite. Ainda só arranjei maneira de estar disponível para os ditos programas à segunda, onde tem direito de antena o Dr. Júlio Machado Vaz.

Confesso que me irrito com os Machados Vaz/Amarais Dias e restante star system psicológico nacional. Não gosto da sua incapacidade de serem assumidamente desinteressantes, da forma paternalista de se dirigirem ao "auditório" e aos seus interlocutores como se estes estivessem numa espécie de pré-história do racionalismo. Não gosto da cadência com que falam, num registo permanente de serviço público, com a inevitável pausa para reflexão a cada ovo de ouro. Reconheço a sua eventual utilidade e que esses senhores não se esgotam neste retrato redutor, mas isto é apenas o que me impede de fazer o esforço para tentar chegar ao que há do lado de lá do muro.

12.1.04

Antes de adormecer

Estive a ouvir detalhes:

Na "Consolação" (Baden Powell e Vinicius de Moraes) tocada pelo Celso Fonseca há uma batida que marca o ritmo da música, que carrega todas as notas. Está longe, seca e determinada.

Na recriação de "Move on up" (Curtis Mayfield) pelo Mark Eitzel, para além da voz arrebatada do próprio, há um piano lento e repetitivo que, no meio da azáfama que o rodeia, traz uma certa intemporalidade à música, pairando suavemente, até pousar no fundo da melodia, quase inerte.

Às vezes apetece-me ser obsessivo

Na esplanada do Casanova (junto à Bica do Sapato), o silêncio das noites de verão não desaparece. Sentamo-nos com a nossa vida, comemos com as nossas palpitações, sonhamos com as dos nossos vizinhos, paramos para olhar para o ocasional cargueiro que navega por entre um rugir mudo. Naquele estrado de madeira, o vento não fala, acaricia-nos levemente, numa languidez subaquática. A cidade cala-se e o rio sussurra. Às vezes apetece-me passar lá os meus dias...

"Na América"

Estava a ver o filme e lembrei-me que nos momentos mais intensos das nossas vidas não escondemos sentimentos atrás de frases elaboradas, povoadas por um vocabulário críptico: choramos, rimos, suspiramos, suamos, trememos. É tudo simples, é tudo directo, brutalmente directo. Não há refúgios, só sangue.

9.1.04

Deambulações caninas

Para garantirem a sua própria sobrevivência, os cães domésticos vivem diariamente com um destino trágico que os obriga a viver com companheiros cuja linguagem não percebem e cujo o único interesse que poderiam eventualmente ter é levado pelo bidé.

Gosto, talvez por isso mesmo, de conferir uma espécie de aura mística ao meu cão. Olho para o hábito que ele tem de se sentar na esquina da varanda, a olhar para o céu, como uma prova de que a sua capacidade de ter consciência desse mesmo destino é real. Vejo-o melancolicamente atento aos sons da cidade, à procura de elos perdidos na urbe, irremediavelmente exilado, e não consigo ficar indiferente ao seu fado.

Um cão, tal como as pessoas, torna-se mais interessante quando é capaz de pensar sobre si próprio. É claro que, fiando-me no meu fraco conhecimento zoológico, ele pode ficar na tal esquina unicamente porque uma imposição fisiológica da espécie o obriga a arejar as guelras, ou uma coisa do género...

8.1.04

Sufixos

Em alguns casos, ao usarmos o sufixo "inho", submetemo-nos ao poder de um determinado conceito, reconhecemos a sua força, assumimos a influência que ele tem sobre nós e vergamo-nos respeitosamente. Por exemplo, uma mulher ao dizer que outra é magrinha, transforma a eventual magreza alheia num objecto de cobiça, reconhecendo-lhe um valor intrinsecamente invejável e revelando publicamente algum descontentamento com o seu próprio corpo. Um homem que diz cuequinha ou pensinho, está a assumir que não sabe o que há-de fazer com a intimidade da mulher.

Opinões

O elemento que sacraliza as fotografias é o silêncio. Deixa-nos a sós com o momento, com a composição pétrea, com a nossa memória sentimental, induzindo-nos num processo melancólico de reavaliação existencial.

Escolhas nocturnas

Ridiculamente, já me vão faltando forças para sair à noite em moldes adolescentes. Como se isto não bastasse, há coisas que contribuem seriamente para a minha crescente falta de motivação para, desinteressadamente, me embebedar. Uma delas é a gradual transformação de discotecas como o Lux numa espécie de colectividade de vanguarda.

Isto só por si não seria problemático (seria mesmo louvável), caso a vanguarda explorada por aqueles rapazinhos não fosse francamente chata. Entre o avanço estético da música electrónica e a diversão pura e dura, escolho a segunda. Em alternativa, aceito frequentar este tipo de estabelecimentos na sua versão actual, esquecendo o meu objectivo primordial, desde que não me cobrem uns dolorosos 6 ou 7 euros por uma bebida, como se estivesse numa discoteca. Entre a voracidade comercial e uma "arte" egocêntrica, fica pouco espaço para o coitado do cliente médio e para as suas modestas vontades.

7.1.04

Atracção

Quando estava no Cristo Rei, pude assistir a diferentes reacções à sua presença: num dos lados da plataforma, os membros de uma seita baptizavam um dos seus, cantando em coro, organizados em círculos concêntricos, de costas voltadas para o mundo à sua volta, perto do céu. Ao meu lado, a tal rapariga estrangeira que me arrastou até lá, disse cinicamente que achava que Cristo era guapo.

6.1.04

Mitos ou talvez não...

Lembrei-me que na China, fora de alguns dos grandes centros urbanos, famílias inteiras pediam para tirar fotografias comigo e com os meus amigos (além de, por alguma razão obscura, nos perguntarem sempre se vinhamos do Paquistão), como belos exemplares de extra-terrestres que éramos. Acho foi o único sítio onde, apesar da minha condição de turista ocidental, continuei a ser encarado como um dos tais macacos, mas na variante tresmalhado.

Mitos

Este fim-de-semana fui ao Cristo Rei pela primeira vez. Caí numa armadilha e fui arrastado até lá por um visitante estrangeiro. Ainda tentei fazer a jogada do spleen, na minha pose de tipo sofisticado que não consome cultura popular, mas não consegui evitar a viagem.

Cada vez mais me convenço que aquele anseio clássico de viajar acompanhado por um habitante local, não faz sentido. Só alguém de fora é que acha verdadeiramente interessante o nosso dia-a-dia, os recantos mais banais da nossa vida, e nós próprios, como estrangeiros. Como me disse uma professora minha há uns anos, as paisagens alpinas, repletas de neve, são muito bonitas para o turista, para quem vive lá, a neve representa apenas 12 meses de lama. Estas visitas relembram-me que afinal vivemos numa espécie de Aldeia dos Macacos, o que é desagradável.

5.1.04

Balanços blogoesféricos

Uma vez que estou fora do "circuito" jornalístico-cultural, as minhas razões para apreciar a blogoesfera prendem-se mais com motivos egoístas (como não poderia deixar de ser) do que com uma avaliação objectiva do seu significado civilizacional. Para mim, a blogoesfera tem a grande virtude de fornecer um conteúdo opinativo de qualidade e semi-anónimo (não sei se já tinha dito que estou fora do "circuito" jornalístico-cultural), organizado em rede. O meu receio principal é que neste mundo rápido, esta frágil rede espontânea não resista à sua constante renovação, agora que os tempos de euforia passaram.

Bridget Jones

Nunca tinha visto o filme. Aliciado pelo dilúvio publicitário que a SIC fez, resolvi aproveitar a minha incapacidade motora de dia 1 para visionar a coisa. Além de ter achado o filme pouco inteligente, o que pode ser uma critíca injusta, visto tratar-se de uma comédia romântica, fiquei ainda mais convencido que provavelmente já foram feitos filmes (e não só) a mais em que as personagens principais são "queridas" e sobretudo "genuínas".

O regresso ao activo

No dia 2, finalmente consegui abrir os olhos (e, mais difícil ainda, mexer o corpo), pela primeira vez, depois da noite da passagem de ano. Não me pareceu evidente se devia ficar contente ou triste por constatar que o mundo ainda ali estava, tal como eu o tinha deixado. Hoje, volto ao blog, depois destas duas semanas de inutilidade intermitente, e sinto algo semelhante. A vida continua...