31.5.04

Nulidades

Na blogoesfera, muita gente escreve sobre "pequenos nadas". O meu exercício de humildade é diferente: consiste em escrever sobre pequenas metades, enjaulado no mais atroz relativismo funcional.

28.5.04

Ó tempo volta para trás...

Usando descaradamente a possibilidade de manipular as datas de edição de posts, volto a sexta-feira para deixar registado para a posteridade que este foi um dia demasiado útil, em que não pude actualizar o blog, mas em que pensei nisso de uma forma sofrida.

27.5.04

Festa rija

Não sou particularmente dado a manifestações públicas de qualquer tipo. Talvez isso aconteça por ter alguma dificuldade em abandonar voluntariamente a racionalidade. Das únicas vezes que o fiz por causa do Sporting, arrependi-me. Em 95, quando da vitória na Taça, quase me juntei ao Alcino Monteiro, ao chegar ao Bairro Alto no preciso momento em que os skinheads resolveram cilindrar uns transeuntes. Em 2000, esperei horas no estádio pela aparição dos campeões, para a festa se acabar em dois minutos, que foi o tempo que o público levou a saltar a vedação e a invadir o relvado.

Talvez como consequência, hoje em dia, olho para a euforia portista da noite passada com distanciamento. Apesar de ter sentido a lágrima no canto do olho durante o jogo, voltei rapidamente à terra, deixando o tripeiro que há em mim por descobrir.

No entanto, compreendo e aceito o regozijo alheio, apesar de ele não me contagiar. Gostava honestamente de conseguir saltar alegremente, sem precisar de estar em directo para a SIC, de alinhar na "brasilificação", mas não consigo. Cada vez mais, vejo estas erupções como muito semelhantes à invasão de campo pela claque do Sporting, no último Sporting-Benfica: os senhores resolveram entrar em campo com o singular objectivo de entrar em campo. Sem adversários, sem obstáculos, só lhes restou atirarem-se para o chão, ou para o colo de um polícia.

Acho que ao sairmos à rua para comemorar uma vitória histórica, devemos rapidamente dirigir-nos a um bar, e reencontrar a treta da fraternidade clubística mais à frente. Só criando uma sucessão de vitórias menores e privadas (por exemplo, conseguindo beber "mais uma") é possível manter vivo o ardor do momento. Preferencialmente, vitórias que nos diluam na multidão. Afinal de contas, se "aquele abraço" se esvai assim que abrimos os olhos, mas vale fazê-lo na manhã seguinte ao acordarmos sozinhos, com uma garrafa de Super-Bock nos braços, deitados num qualquer banco de jardim.

26.5.04

Trattoria

Estupidamente (digo estupidamente porque insisto em esquecer-me que vivo em Portugal), resolvi deixar-me levar por uma vaga de fundo criada pelas revistas cor-de-rosa e ir experimentar o renovado "La Trattoria". Como é óbvio, não voltarei a pôr lá os pés.

Das "reportagens" que li nalgumas dessas publicações, só mesmo a decoração (mais precisamente a iluminação) e a localização correspondiam aos líricos relatos. Tudo o resto, a começar pelo serviço e a acabar na comida, é mau demais. Como se isto não bastasse, no final da refeição, fatalmente, lá estavam incluídos na conta os proverbiais erros a favor da casa. Também aqui, o Euro começou mais cedo.

Uma das coisas curiosas em que reparei foi que, ao contrário do que estava à espera, as mesas não estavam povoadas por socialites, nem por ministros da defesa, mas sim por famílias. Esta ausência de relações disfuncionais para mim é um sinal inequívoco que nem o meio de onde a putativa gerência do sítio (a dupla Pedro Luz, empresário da noite, e Catarina Flores, ex-santanette) saiu, cai no engodo. Tenho pena de não ter tido oportunidade de fazer uma análise prévia à sala, sempre tinha tido possibilidade de entregar os 25 € à Telepizza.

25.5.04

Último reduto

Talvez como herança de um certo marialvismo paternal, a ideia sexista do homem que põe a comida na mesa sempre esteve presente na minha vida, mesmo que reprimida pela evolução. Uma das suas concretizações surge durante a condução nocturna. Por volta da uma da manhã, na noite de domingo para segunda, a vir do Algarve com a namorada a dormir ao meu lado e o cão a fazer o mesmo no banco de trás, tentava caçar Lisboa, cercado pela noite.

Linhas tortas

A rapaziada da Amazon recomendou-me um disco do Bonga. Ao que parece, um dos resultados que saiu de uma análise cuidada da salganhada de preferências dos seus utilizadores foi este. Das duas uma, ou o sistema ainda precisa de umas afinações, ou é tão avançado que permite à Amazon aceder à psique da clientela. No meu caso, teria identificado, na súmula das minhas anteriores compras musicais, uma espécie de "freudian slip". Num momento de exultação psicanalítica, descobriram que a miscelânea que eu tinha adquirido não fazia mais do que revelar uma procura inconsciente da música do iminente cantor africano. Face a este diagnóstico, só posso ter uma reacção: tratar de arranjar uma segunda opinião, porque isto pode ser grave.

24.5.04

Dinâmica

Na estrada, circulamos num equilíbrio dinâmico. Raciocinamos em termos relativos, usando a estrada como contexto estático, mergulhado na previsibilidade. O problema surge quando saímos fora das margens desse contexto e passamos para a ter que lidar com o absoluto. Deixamos de poder pensar que apenas estamos a andar a mais 80 km/h do que o carro que vai na faixa ao nosso lado, ou à mesma velocidade que o Subaru da Brigada de Trânsito, porque nos apercebermos que afinal íamos a mais 180 km/h do que a árvore que está na berma.

21.5.04

Red District

Ao passear-me pela H&M do Chiado, dei por mim a identificar tendências emergentes da moda. Apercebi-me da deslocação gradual de peso dos anos 80 para os anos 50, e cheguei à conclusão que a H&M, dentro do negócio do fast-clothing, seria talvez a marca mais apelativa, pelo arrojo civilizado da secção masculina, apesar de ferozmente camaleónica como as outras.

Talvez por ter chegado a esta conclusão, em certa medida, vi-me à venda na dita loja, o que considerei algo ofensivo. A ser verdade que quanto mais artificial um produto for, melhor adaptado ele está aos nossos gostos, também nas cadeias de fast-clothing deste mundo há uma transferência dessa artificialidade e da subjacente superficialidade, das marcas para os clientes, graças à identificação entre os dois, à reciprocidade cultural, onde é difícil estabelecer uma relação de causalidade. Nestes entrepostos não se percebe quem veio primeiro, a roupa ou o "jovem", mas sabemos que do lado da roupa há alguém que está muito "à frente".

Posso dizer que não gostei particularmente de me ver encaixado num paradigma alternativo de modernidade, onde já não era apenas um número tout court, mas um número vítima de uma campanha de marketing. Apesar de reconhecer que a ideia de nos revermos numa imagem de marca não seja peregrina, até agora esse elo estava presente a um nível unitário, onde "aquela cartola do Augustus" poderia ter a nossa cara, mas não o Augustus propriamente dito (é caso para dizer aleluia).

Vendo bem as coisas, até deveríamos estar agradecidos às acções relâmpago destas máquinas promocionais que, ao criarem um "novo homem", varreram alguns dos nossos míticos "costureiros" da superfície. Contudo era verdadeiramente dispensável que nos tivessem transformado num Homo-H&M (que não passa de um Homo-Augustus avant la lettre) ao equiparem-nos da cabeça aos pés, ao venderem-nos música, revistas, restaurantes, cores e um vocabulário mutante. Ainda assim, o que nos vale é a efemeridade das colecções. Pode ser que não haja tempo para tirar fotografias.

Arte marcial

Parece que a etimologia de judo vem do japonês em que "ju" quer dizer "nobre" e "dô" significa "modo". Em inglês traduzem para "gentle way" ou "gentle art".

Nesta visão elementar, a sensualidade tem muito em comum com esta arte marcial. Sendo igualmente uma técnica sobretudo defensiva (ou, nalguns casos, passiva), é também uma forma nobre e delicada de usar o peso do nosso adversário a nosso favor.

20.5.04

Suspension of disbelief

Descobri que há uma rua no Parque das Nações que se chama Rua do Pólo Norte. Sendo que aquela zona teria sido idealizada à imagem de um novo Portugal, não deixa de ser curioso que os nomes das ruas desse novo Portugal sejam iguais aos das "ruas" que podemos encontrar no interior de centros comerciais. Vítimas de um individualismo urbano pós-moderno, nas mãos destes urbanizadores e gestores de shoppings, passaríamos a viver numa cidade ficcionada onde os nossos vizinhos seriam a Zara e a Boutique dos Relógios.

19.5.04

Leitura de praia

Ler na praia impõe diversos constrangimentos de ordem técnica. Entre outros, é impossível encontrar uma posição confortável durante mais de dez minutos, estamos constantemente distraídos com a efervescência que nos rodeia, e a alvura das páginas pode facilmente cegar-nos. Como "diz que" resistir é vencer, se quisermos contornar os obstáculos ao desenvolvimento cultural que existem nos areais, impõe-se algum planeamento.

Qualquer leitura de praia, desde que o seu conteúdo exija algum raciocínio (o que excluí aproximadamente 87% das revistas), deve estar estruturada em capítulos curtos, organizados com a ajuda de um índice e que permitam encaixar uma ideia rápida entre o choro desenfreado de uma criancinha que se perdeu dos pais e o atropelo por dois cães "brincalhões". Uma letra gorda, um papel de tonalidades bronzeadas e um formato que não se curve perante a força do vento, são igualmente bem-vindos. Finalmente, é importante (mas não essencial) para facilitar a concentração, que o livro esteja escrito na nossa língua materna.

Resumindo, ficamos praticamente limitados a livros de bolso de aforismos, aos manuais do carro, do vídeo (ou de qualquer outro equipamento doméstico), a livros de self-help, e ao ocasional "ensaio" sobre marketing ou estratégia empresarial. Isto significa que talvez valha mais a pena esquecer a resistência, e deixarmo-nos cair directamente nos braços da histriónica maralha em fato-de-banho.

Rebanho

A pretensão de que podemos "levar" uma pessoa a algum lado, como se fôssemos detentores e únicos intérpretes de um hipotético mapa do tesouro, pode ser enganadora. "Levar alguém" ao bas-fond da noite, ao orgasmo, ou mesmo "lá", tem subjacente a noção de que tratamos por tu o dito bas-fond, que somos detentores de um "juliomachadovazico" conhecimento da sexualidade e de um corpo à altura dessa sabedoria, que viemos de "lá", ou que pelo menos passamos "lá" férias. Só nestas circunstâncias é admissível a exclusividade deste cargo de pastor. No entanto, mesmo que elas se verifiquem, nunca é verdadeiramente claro quem leva quem, ou se alguém é levado de facto, lançando uma dúvida metafísica sobre a (i)mobilidade de proverbiais montanhas, ou mesmo sobre a sua existência.

18.5.04

Liberdades

Suponho que um chinelo (ou havaiana, na sua encarnação primavera-verão 2003) seja o equivalente da indústria do calçado, à mota. Pelo menos, eu, chinelante confesso e desavergonhado, dou muitas vezes por mim a questionar esta escolha de vestuário e a ser forçado a utilizar argumentos partilhados com essa outra seita de gosto duvidoso (os motoqueiros) para manter este meu hábito veraneante. Ou seja, depois de aturada reflexão sobre o tema, acabo sempre por me refugiar na treta da liberdade que sinto quando tenho os pés montados nos ditos chinelos, para justificar opções de vida pouco sérias.

17.5.04

Constatação

Tentar domar o produto de um ataque desenfreado de espirros, evitando que ele cumpra o desígnio divino de se vir depositar algures na nossa cara para terror generalizado da audiência, e comer um croissant com chocolate da Bénard deixando a roupa incólume, são duas coisas que requerem uma técnica manual prodigiosa.

Mais males que vêm por bem...

O facto de o Sporting ter estado remetido à sua condição natural neste final de época, teve os seus momentos agradáveis. Ontem, por exemplo, permitiu-me estar na Costa da Caparica numa praia semi-vazia, apenas frequentada por mulheres, alguns sportinguistas, e outros seres não abrangidos pela taxinomia futebolística. O processo de selecção natural fez com que os "vencidos do futebol" acabassem a gozar a glória que o Benfica não açambarcou, sob a forma de um memorável dia de verão que, pelos vistos, não se limitava a proporcionar "condições ideais para a prática do futebol". Estradas desimpedidas, estacionamento ao alcance de qualquer veículo, um areal livre de boladas iminentes e de chapéus-de-sol da Olá, uma esplanada com mesas vagas e amêijoas que não acabaram às três da tarde, compensaram largamente o suplício infligido pela embriagada nação benfiquista em histeria, nas ruas da cidade. É caso para dizer: levem lá a taça.

14.5.04

Serviços noticiosos

A já muito debatida imbecilidade das notícias do trânsito, transmitidas pelos "programas da manhã" televisivos, tem origem num erro de análise básico: ao contrário do que seria expectável, há muito que a racionalidade deixou os ICs e auto-estradas dos subúrbios lisboetas ao abandono. As filas tornaram-se numa fatalidade, num inferno monótono, a que os habitantes dessas localidades se habituaram.

Quem vê esses pseudo-serviços noticiosos são as pessoas que não precisam deles, e que o fazem apenas por voyeurismo: quem não cumpre horários, quem vive no centro da cidade ou na proximidade do metro. Todos os outros, estão demasiado ocupados a serem temas de reportagem do helicóptero da TVI e já estão indiferentes ao facto da Júlia Pinheiro atribuir um semáforo vermelho ao IC19, às 8:27.

Se houver um acidente, ou se a lenta procissão começar à porta de casa, em vez de começar, como habitualmente, 200 metros mais abaixo, isso só significa que se calhar é melhor comprar o jornal antes de entrar no carro, em vez de o fazer à porta do emprego, mesmo porque fugir não é remédio já que "diz que" assim que mudamos de faixa, começa milagrosamente a andar a que nós deixámos para trás, e o mesmo se passa numa escala macrocósmica, com as estradas em si. A falta de alternativas, obriga-nos ao heroísmo.

13.5.04

Sense and Sensibility

Para além de ter pele, ter o cabelo suficientemente comprido para ser despenteável é uma condição essencial para se poder desfrutar do vento. A ansiedade que sinto antes de praticamente rapar o cabelo duas vezes por ano está provavelmente relacionada com a posterior impossibilidade de usufruir desse vaporoso e sibilino enlace.

Quebra

Um amigo dizia-me que o que o impressionava mais nos acidentes de automóvel era a secura do embate. Algum tempo depois de ele me ter dito isto, lá arranjei maneira de me esmagar noutro carro, podendo observar in loco a estirilidade do momento em que a minha história como condutor se dissipou na aridez da batida, no som efémero do confronto entre duas realidades monlíticas. Na altura, lembrei-me imediatamente do que o meu amigo me tinha relatado. Acho que, no fundo, também eu esperei por uma câmara lenta de última hora, para me salvar da rispidez desta interrupção.

12.5.04

Seis meses

Seis meses de blog. Uma data sem relevância mas tem que se começar por algum lado, já que tenho vindo a sentir que o tempo custa a passar por estas bandas. Começo a ficar cansado de uma blogoesfera virada para dentro de si própria, onde escolas de pensamento blogoesférico se limitam a catarem-se umas às outras. Tendo começado por ser um escape para o sufoco do dia-a-dia, esta criação virtual tem vindo aos poucos a tornar-se numa extensão esplendorosa desse mesmo sufoco.

Devia aproveitar a ocasião para um período de reflexão, mas como estou sem tempo para isso, prefiro usar para esse efeito umas palavras que li recentemente e com as quais concordo na sua generalidade:

«Noto um certo cansaço na lusa blogolândia. Uma cada vez mais reduzida circulação de olhares pelos escritos dos outros, uma cada vez maior circulação em circuito fechado tu citas-me a mim, eu cito-te a ti, somos amigos, colegas, camaradas de partido. Talvez tudo isto tenha a ver com a repetição de ideias ou tiques, talvez tenha a ver com a transposição das capelinhas nacionais para o mundo internético. Jornalistas que escrevem por aqui e são lidos (e comentados) pelos colegas que, por sua vez, também têm o seu blog e são reciprocamente lidos e comentados. Berloquistas de esquerda e neo-cons lidos e citados reciprocamente. Escritores, poetas e aspirantes a. Há também todos os outros - muitos e muitos deles de muito boa qualidade (talvez de maior qualidade) - e se calhar todos estes olhares seriam merecedores de maior atenção e leitura do que os primeiros. Porque não têm o tempo de antena "no exterior", porque têm um olhar diferente. Porque, sendo a internet um outro espaço, mau seria se fosse apenas a repetição dos espaços habituais. Será por isso que este abrandamento de interesse surge.» Planeta Reboque.

11.5.04

Contributo para velhas polémicas

Em Barcelona, apercebo-me que o turismo está reservado para o lado permanente da cidade, onde fazemos um percurso que se limita a levar-nos de postal em postal. No entanto, deixamo-lo para trás quando passamos a viver a cidade temporária, volúvel, arquitectada numa sucessão de momentos irrepetíveis. No limite, isso dá-se quando se torna evidente a identificação entre o aglomerado urbano e os seus habitantes, em toda a sua singularidade.

Barcelona, meu amor

Estive três dias em Barcelona a visitar a comunidade de jovens artistas portugueses que se encontra exilada na Catalunha. O que eu vi por lá lembrou-me as fotos das abastadas famílias portuguesas que fugiram para o Brasil, na altura do 25 de Abril, e que o Expresso publicou no fim-de-semana do 30º aniversário de revolução. Forçadas pelas circunstâncias históricas a recomeçarem uma vida, todas sem excepção conseguiram arranjar uns minutinhos para tirar umas fotos de grupo, nas praias de Búzios, com um ar bestialmente saudável e bem disposto, mergulhadas nas águas quentes e numa idílica felicidade. Para trás, além de umas herdades, deixaram igualmente a revolução socialista e presumo que isso fosse o suficiente para esboçarem um(s) sorriso(s) sentido(s). Em Barcelona, os jovens portugueses conseguiram retomar esta modalidade de exílio. Foram à procura de uma vida melhor e parece que bastou desembarcarem do avião para tropeçarem nela. Confesso que senti alguma inveja.

7.5.04

"Apanhar do chão"

Os nossos pais obrigam-nos a apanhar coisas do chão. Alguns anos mais tarde, em jeito de revolta e ao abrigo de uma pseudo-evolução fracturante, transformamos o entulho que abandonamos pelos cantos em "sofisticados" objectos de decoração. O chão acompanha-nos ao longo da vida como o derradeiro aliado do protesto e um garante da independência filial.

Tempo

Fico contente por saber que entrámos numa altura do ano em que não precisamos de nos preocupar com a fiabilidade dos resultados dessa feitiçaria cujo resultado dá pelo nome de "Boletim Meteorológico". A partir do primeiro dia do ano com temperaturas acima dos 30 graus, podemos encarar a previsão oficial do tempo como o pior cenário possível. Ou seja, se assumirmos que a probabilidade dessa previsão falhar é bastante elevada, podemos igualmente assumir que no caso de ela estar efectivamente errada, o que nos espera será sempre melhor do que a sentença original do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica. São estas as singelas alegrias de viver no Norte de África.

Gente sem nada para fazer e com dinheiro a mais

Parece que uma associação de pais inglesa está preocupada com o potencial acesso das suas crianças a conteúdos impróprios para consumo em tenra idade, através de telemóveis de 3ª geração, que estarão à venda a partir do final do ano por aquelas bandas. Sendo assim, pedem que os fabricantes vendam os ditos aparelhos com software de filtragem, para evitar que os petizes tenham acesso a pornografia e "outros serviços para adultos".

Pelos vistos, nas mentes destes pais, vítimas de um histerismo generalizado, há uma distorção semântica onde o significado de conceitos como a pornografia se perdeu. Parece-me que o que a pornografia de facto não está à solta na internet, mas sim nas ruas, ao vermos crianças com telemóveis de 750 €.

6.5.04

Minudências

Todos os dias paro o carro na mesma zona de um parque de estacionamento, ao lado do meu escritório. Faço uma prospecção pouco convicta dos lugares mais "confortáveis" e acabo por abandonar a minha viatura relativamente longe da saída, num recanto algo incómodo e pouco frequentado, mas que me permite a desobediência civil, ignorando ostensivamente o tracejado do chão. Periodicamente, a minha sondagem inicial dá frutos, e consigo desencantar um lugar na zona chique do parque, onde não tenho que andar mais do que quinze metros até chegar à rua.

Todo este processo decorre de uma forma quase maquinal, bovina, caindo no esquecimento mais absoluto assim que dou por mim no exterior. No entanto, esta trivialidade monta a armadilha para um dos pequenos prazeres desta, muitas vezes ridícula, vida urbana: entrar num parque de estacionamento, ignorando a localização do nosso automóvel e encontrá-lo por acaso, inesperadamente próximo.

O David sente-se vivo ao aperceber-se que ainda reage a um tema como "Agressões sexuais: sim ou não?". No meu caso, talvez pelo pouco contacto que tenho com o lado místico da vida, sinto-me vivo quando encontro provas de ter raciocinado com ambição numa das alturas mais atordoantes do dia-a-dia: a "entrada ao serviço".

5.5.04

Doença bipolar

Tenho um relacionamento de índole esquerdista com os meus amigos e guardo uma lógica de centro-direita para o resto do mundo. Numa primeira análise, fiquei algo transtornado com esta aparente hipocrisia, mas posteriormente apercebi-me que ela existe exclusivamente por necessidade. Afinal de contas, se não recorresse a um socialismo moderado com os meus "entes queridos", muitas vezes, nem um jantar conseguiria negociar.

Não sei se ganho alguma coisa com isto, mas sei que a unidade grupal em que me incluo só poderá subsistir com uma submissão parcial a um amor fraterno. Presumo que o facto de ter boas referências das pessoas por quem abdico de alguns dos meus direitos individuais o possibilita. Por outro lado, quando leio nos jornais coisas como «populares agradeceram a saída do apresentador da prisão» (DN, página 5) acompanhando uma fotografia de uma senhora de joelhos, em frente ao EPL, agradecendo aos céus, percebo porque razão não me é possível aplicar o mesmo raciocínio à sociedade em geral, e a explicação para este meu deslizar no espectro político.

4.5.04

Eco

Dou por mim no silêncio. Nada para dizer, nem para escrever. Mais uma vez recorro ao vazio como tema para manter a disciplina diária, mesmo que ferida. Nestes dias, apetece-me recorrer a manuais, arranjar polémicas ou comentar os comentários alheios, à procura de uma tábua de salvação. Sinto que hoje não me resta nada para além da vida dos outros, como se ao aprisionar detalhes do mundo que me rodeia, eu próprio desaparecesse, fruto de uma existência demasiado transversal. Nestes dias, sou forçado a reconhecer que me fico por «uma triste futilidade».

Nota: visto que o link para o No Arame não vai parar ao sítio que eu queria, o post que continha o tal manual é um de 19/04/2004 e chama-se «Para acabar de vez com a literatura».

Males que vêm por bem

Venho por este meio agradecer publicamente às alminhas que, mesmo com alguns dias de atraso relativamente ao 30º aniversário do 25 de Abril, procuraram (e conseguiram) dar-nos uma grande lição de cidadania, ao ter o cuidado de libertar o Carlos Cruz em dia de meia-final de Liga dos Campeões, garantindo assim um dos preceitos fundamentais da vida em democracia: a liberdade de escolha (de canal/tema).

3.5.04

Sportinguismo

Penso que todos os sportinguistas sabiam que iam perder com o Benfica. Não por o Benfica ser superior ao Sporting, mas por ser o nosso destino. Em tempos recentes, o acaso fez com que nos permitíssemos suspirar convictamente por títulos, conquistas suadas e "regularidades exibicionais", desviando-nos momentaneamente da essência catastrófica da nossa condição de adepto "leonino". Este tipo de derrotas vem repor, não tanto a verdade, mas a organização cénica do futebol português.

O Sporting nunca poderá ser maquinal como o Porto ou anacronicamente ambicioso como o Benfica. A nossa função é a de carregar o fardo de um certo sebastianismo, na nação futeboleira. No Sporting não se luta por resultados mas sim por uma multifacetada glória, por uma genialidade fugaz, de olhos postos no horizonte. Não choramos as derrotas, choramos as vitórias, enquanto tropeçamos nas cadeiras da fila da frente, durante um abraço extático a um qualquer desconhecido, vestido de verde e branco. Neste contexto, só posso mesmo agradecer a um Benfica que se quer "à Benfica", mas que se fica por uma imagem miserável da fantasia inerente a esse slogan, por nos ter ajudado a voltarmos a ser, também nós, iguais a nós próprios.