30.9.04

Radiofonias II

Num passado recente, a única razão que evitava que uma locutora de rádio se engasgasse quando nos informava que a música que tinha acabado de tocar se intitulava "Too drunk to fuck" era porque sabia que muito poucas pessoas no auditório compreendiam o inglês que antecedia a palavra "fuck" e, mesmo que o fizessem, ficavam atoladas na subtileza que separa o excessivo "too" do instrumental "to", passando assim ao lado do potencial anarquizante de tal título. Hoje em dia, somos todos demasiado sofisticados para precisarmos de traduções simultâneas, ou mesmo para nos chocarmos.

Radiofonias

Hoje de manhã, o Rui Portulez, enquanto introduzia uma música do Sam the Kid chamada "Sedução", calou-se reverencialmente, conferindo ao Vítor Espadinha a solenidade necessária para que ele dissesse na sua voz nocturna que "Quando [eu] era mais novo havia uma coisa muito bonita que era a sedução". Este momento a roçar a religiosidade quase me fez esquecer que há uns tempos o mesmo senhor disse, em rigoroso exclusivo para o Cabaret da Coxa e com algum orgulho, que já lhe tinham metido o dedo no rabo. Infelizmente (ou talvez não), ainda há imagens que dificilmente se dissipam e momentos de misticismo que não se anulam.

29.9.04

Facilitismo

Pessoas que vivem em casas alugadas tendem a desaparecer com mais frequência. Entregam a pele aos serviços municipalizados e partem. Se essa capacidade até pode ser desejável para nós próprios, é ligeiramente dolorosa de observar nos outros. Os amigos, em certa medida, querem-se rochosos. Não há telemóvel ou webmail que substitua um endereço postal intimamente ligado a uma vida de entulho.

28.9.04

Equilibrismo

Compro tudo o que quero mas, regra geral, só cobiço coisas que posso comprar. Tudo o que não se enquadra nesta fórmula persegue-me durante a noite, mas é vital dosear a impossibilidade.

24.9.04

Fanny Ardant

Sou um tipo com pouco passado. Grande parte das minhas recordações não passam de detalhes de fertilidade limitada. Por enquanto sinto-me ágil, mas aos poucos vou reconhecendo que com a idade serei obrigado a carregar o peso de uma vida de vestígios. O meu olhar cumprirá o seu desígnio e tornar-se-á um repositório de melancolia, vítima de uma tristeza difusa. É bastante provável que acabe numa qualquer esplanada a ver pessoas a passar no vazio, e a pensar que tal como com os gangsters, também a minha "verdadeira vida está no silêncio".

23.9.04

Errata

A rapariga que fez a acusação exigiu uma rectificação. Afinal não são mulheres antipáticas que ela me acusou de atrair, são mulheres "mais velhas e ressabiadas". Devia ter desconfiado que a antipatia não era motivo para acusar alguém do que quer que seja. Também devia ter desconfiado que de certas pessoas não se pode exigir objectividade, e que isso não é forçosamente mau...

Disfarces

Uma amiga foi assaltada quando entrava em casa, ameaçada com uma faca "por um indivíduo de raça negra". Na esquadra, a polícia, entre queixas sobre minorias à solta, aconselhou-a a nunca entrar num elevador com tais indivíduos, por muito bom aspecto que tenham (o que parecia ser o caso). Depreende-se que só os brancos é que não se conseguem disfarçar para assaltar os seus semelhantes. Abusam da normalidade e não contam com os perigos que espreitam na familiaridade. Isto deve ser um produto do "modelo social europeu": não estando afinado para uma sobrevivência de curto prazo, o assaltante indígena não sacraliza a caça. Não é rigoroso. Esquece-se que só os meliantes de outras etnias se podem dar ao luxo de disfarçar o facto de serem uns facínoras atrás de um exotismo óbvio, mas compostinho.

The plot thickens...

Aqui, aqui e aqui. Está visto que depois da armadilha montada só me resta deitar-me cedo e amanhã tomar um bom pequeno-almoço. Talvez umas rezas também não façam mal.

22.9.04

O gangster como mito

"Os gangsters e os deuses não falam, mexem a cabeça, e tudo se concretiza."

Roland Barthes in Puissance et désinvolture, Mythologies.

21.9.04

Crónica de um regresso a casa (em escrita semi-automática)

Há ruas no Príncipe Real onde não me importava de viver. Mesmo sem lugar de estacionamento. Aparentemente a Travessa do Noronha é uma delas. Modorra. Devia ficar aqui a ler. Um intelectual. Vai para a cinemateca. Devia ir lá mais vezes. Vou fintar o homem da Cais. Hoje não. O vento devia ser sempre lateral e quente. Apetecia-me jantar à janela do Viagem de Sabores. Já me acusaram de atrair mulheres antipáticas. Não me lembro do nome dela. O João Gobern deve lembrar-se. Se calhar ainda tenho esse DNA algures. A cidade nova. Aparentemente já chegou toda a gente a casa. Um lugar. Aqui também há silêncio.

Pequenas alegrias

Apesar do advento do executivismo, a minha vida contém uma série de anacronismos que me melindram: tenho horários flexíveis mas trabalho um número de horas "normal", não fixo com naturalidade as siglas ou acrónimos de dezenas de instituições que povoam o meu espaço vital e não tenho que carregar um computador portátil pela cidade. Não restam dúvidas, a marcha do progresso deixou-me para trás.

20.9.04

Envelhecer

Ontem, na praia de Cabanas, quatro jovens discutiam bronzeados uniformes enquanto esperavam, à beira-mar, por cenas dos próximos capítulos. Apercebemo-nos amargurados que as nossas peles já não são capazes de tal proeza: de agir como um todo. Quando deixamos de crescer em altura o tempo começa a atacar-nos o corpo de uma forma cirúrgica. Multiplicam-se os subsistemas e a vulnerabilidade. Os órgãos adultos recusam o destino comum. Abandonam o ninho, insurgindo-se contra a unidade viçosa do corpo adolescente. Ganham vontade própria, gastam-se em arritmia e conduzem-nos caoticamente ao nosso fim.

Estado Novo

No imobiliário português vive-se uma situação complicada: há uma geração que aguarda ansiosamente que um país inteiro caia da cadeira. Sem direito a beneméritas activistas holandesas, generais sem medo, ou telejornais da TVI. Mais um drama silencioso.

17.9.04

Redução

"Se você pensar somente em você, você ganhará dinheiro, criará empregos, pagará mais impostos... ajudará todo mundo. Essa é a beleza do capitalismo. Se você pensar somente nos outros, bem, isso não existe. Esse é o problema do socialismo."

in FDR

Suposição

Pessoas verdadeiramente atraentes (no sentido carnal do termo) não têm blogs. O sexo surge naturalmente. É claro que este género de raciocínios pode apenas servir para encobrir estratégias de sobrevivência, para justificar o facto de sermos uns iletrados ou mesmo para tornar aceitável manter vivo um blog que não interessa ao menino Jesus. Curiosamente enquanto estava a escrever isto senti-me a Leonor Seixas n' "A Passagem da Noite", quando ela dizia que o teste de gravidez era para uma amiga...

16.9.04

Distinções

A ficção é uma pose, a mentira é uma atitude.

"Os portugueses não viajam"

Apercebo-me com alguma tristeza que só sei de duas pessoas que já visitaram o Irão. Uma é suíça e no único dia que estive com ela, fui levado pela primeira vez ao Cristo-Rei. A outra sei que vive em Toronto, que tira fotografias e pouco mais.

Reconheço que há um Brasil (ou uma Europa) interessante, avassalador, por descobrir. Já para nem ir tão longe, o mesmo poderia ser dito de Espanha, ou mesmo de Portugal. Parece-me óbvio que no país profundo há também um país "distante". No entanto, essa distância que está ao virar da esquina rareia, tornou-se improvável, falível. É demasiado familiar e não forçosamente eficaz.

Esta realidade faz com que, enquanto tiver que praticar um turismo sem tempo, me obrigue a uma logística pouco exigente que me permita gastar todos os meus euros a tentar ir o mais longe possível, a tentar deixar o que puder (ou o que quiser) para trás. Optarei sempre por comprar uma distância incontornável, não-metafórica. A mais incontornável que conseguir encaixar em 22 dias úteis. Afinal de contas perto já eu estou. Diria mesmo que estou exactamente aqui.

15.9.04

Derivados

A cidade produz mutações, espécimenes transgénicos que se movimentam em velocidade. Às vezes apresentam-se em toda a sua solenidade. Alternativamente refugiam-se numa cegueira selectiva induzida pelas barreiras de betão. Na noite passada, escondido por uma esquina, ouvi um ladrar peculiar, um ladrar humano. Ingenuamente, esperei que o ladrar se transformasse em palavras inteligíveis, eventualmente seguidas de umas gargalhadas boçais que contaminassem o meu espanto com realismo. Não aconteceu. O ladrar prosseguiu. Viver perto destas esquizofrenias biológicas relembra-me que a urbe ainda é um conceito abstracto.

14.9.04

Entretanto...

Continuo sem ideias mas, absurdamente, dou por mim com vontade de semear mediocridade. A tragédia agora fica-se pelo pouco tempo que tenho para o fazer. Para dizer a verdade, o que me sobra tem sido gasto numa aproximação que se quer dissimulada ao bestsellerdom. Impedido pela ética de ler o "Código de Da Vinci", opto pela política do Adam Thirlwell. Pode não ser uma obra-prima, mas qualquer livro que se inicie por uma cena de sexo anal, onde o ânus propriamente dito não é o cerne da questão, merece pelo menos umas horas de atenção. Concordando-se ou não com o ponto de vista do autor. Há alturas em que é importante tentar esquecer a melancolia.

13.9.04

Utilitarismo II

Depois de ter defendido (com alguma ironia, é certo) a utilidade do construtor civil, impõe-se o relato de uma conversa de chacha que ocorreu ontem, entre dois algarvios aparentemente normais, num posto Galp perto de Tavira, pelas 21:30.

O Nº1 dirigia-se à caixa enquanto o Nº2 bebia pausadamente um café, confortavelmente instalado no seu conjunto calção - camisa aberta até meio da barriga - fio de ouro resplandecente - chinelo modelo "Continente" com dedos do pé a tentarem desesperadamente tocar no chão:

Nº1: - Então, por aqui?
Nº2: - Pois é. [pausa] É para ver se não ficamos aí parados na via pública. [pausa] Se fosse um avião era pior.
Nº1: - Hã?
Nº2: - Vínhamos cá parar abaixo.
Nº1: - Ah pois era! [pausa] Ouve lá, já arrancaste com aquela obra lá prós lados do reservatório?

10.9.04

Utilitarismo

O construtor civil é útil. É útil porque é rico, sujo mas rico. Porque percebe de obras, conhece valores de mercado. Porque pode facilmente reunir um grupo de pretos ou de ucranianos esfomeados para fazer a barba à chapada a alguém. É útil porque está no topo da pirâmide imobiliária. Porque é o rei da selva, mas continua a ser um selvagem.

Saldos do Pagapouco

Mais reaccionário do que anunciar preços em euros com o seu equivalente em escudos, só mesmo definir esses preços de maneira a que o valor "em moeda antiga" acabe invariavelmente em 99.

9.9.04

A morte pelo design

Ao poucos, pilares imperceptíveis da minha realidade vão sendo derrubados pela modernidade. Um deles está relacionado com as entranhas dos bancos de automóvel. Uma peça de Lego, ou uma moeda que desaparecesse naqueles buracos entre as costas e o assento sempre esteve, durante grande parte da minha vida, irremediavelmente perdida. De nada me serviu aquele conceito popular de que as coisas "não têm buracos". Atrás ou dentro dos bancos, o buraco não era condição necessária para o desaparecimento de objectos mais subtis.

Hoje, os designers que nos deixam rebater bancos de forma assimétrica, ou entrar num carro através de um sistema "easy entry", ensinaram-nos que os habitáculos têm de facto alguns buracos, mas que todos os eles podem estar (mais ou menos) ao nosso alcance. Com isto, entregaram-me nas mãos de uma ciência da utilidade, do prático, do conforto. Posso ter ficado uns cêntimos mais rico mas estas ridículas conquistas parecem tornar a vida incrivelmente deslavada. Tendo optado por arrumar Deus na prateleira da prostética, é nestas alturas que me interrogo se não seria preferível não o ter feito. Pelo menos enquanto espero por uma solução para esta súbita ausência de vazio.

Gang bang

Passear no IKEA pode ser francamente assustador. Digo isto não tanto pela experiência de estar encafuado num armazém gigantesco com algumas centenas de "portugueses médios", mas pelo facto de sermos obrigados a partilhar salas, cozinhas, quartos, ilusoriamente reais e ilusoriamente nossos por uns minutos, com esses mesmos portugueses. Não há nada como a promiscuidade desabrida de ter dez conterrâneos a inspeccionar gavetas e a testar a solidez e o conforto do "nosso" mobiliário, para ganhar pela via metafórica um entendimento mais palpável da noção de violação.

8.9.04

Aromas

Os sacos de água quente têm um cheiro antigo. Tão antigo como os diversos tons de enevoado de um céu de Setembro onde desbotou o Outono ou como as fugas arquitectadas pelos casais que estacionam na sombra que povoa as traseiras do meu prédio.

7.9.04

Paralelismo tirado da cartola

No fim-de-semana, enquanto via o programa sobre a eutanásia de que a Vieira do Mar fala, pensei que se soubesse que alguém me suicidava se eu ficasse num estado vegetativo isso não queria forçosamente dizer que eu gostasse de ficar num estado vegetativo ou mesmo que ficar num estado vegetativo passasse a ser uma opção de vida. O moralismo deve acabar sempre por se esbarrar na realidade...

6.9.04

O Arq.º Correia

Parece inevitável. Tropeçamos um no outro quando, acossados por este "fascinante" mundo do imobiliário, fugimos para a noite e da noite para onde for possível. Foi uma pena não ter aceite o meu convite para um pezinho de dança no Incógnito. Teria assistido a um fenómeno raro nos dias que correm: uma pista de discoteca tão cheia e tão quente que estava para lá do erotismo. Mesmo admitindo que há costas e rabos que só ganham com a proximidade, só não desatámos todos à bofetada porque a qualidade da música não permitia desperdícios. Fica para a próxima Sr. Arquitecto.

Na esplanada

O Nuno Costa Santos fala da delegação da bravura a que obriga a normalidade. Ao ler o post, lembrei-me do Norman Mailer que dizia que o "O Velho e o Mar" era um livro falhado porque o velho nunca se tinha sentido tentado a desistir e a soltar o peixe, permitindo que o Hemingway criasse uma personagem incompleta. Eu acrescentaria desumana. Realmente, na normalidade não nos podemos dar ao luxo de viver inacabados, temos que lidar com a cobardia todos os dias. Muito obrigado pelas visitas, e pelo encaminhamento.

2.9.04

Constatação

Sou um tipo sem ideias. Acumulo observações inúteis. Provavelmente terei sido assim toda a minha vida. Não sei. Também a memória me ilude.

1.9.04

I'll be anything you want me to be, as long as you're buying...

O Sri Lanka tinha uma grande qualidade: deixava espaço para os nossos passados, no entanto, era suficientemente intrusivo para gerar ecos. Em Lisboa, passa-se o inverso. Com o regresso de férias, a cidade e os vestígios do passado moldam-nos, alcançam-nos inapelavelmente. Desgostosos, passamos do inefável ao insuportável entre uma refeição da Lufthansa e a recolha de bagagens no aeroporto. À saída do avião, em vez de familiares ou amigos, já só se atropelam constrangimentos. É o determinismo do "eu" contido no "outro".