28.1.05

Sharks patrol these waters

O alto do Parque Eduardo VII é frequentado durante todo o dia por homens de meia-idade que, depois de terem transformado as suas mulheres em técnicas especializadas quando se casaram com elas, ficam sentados nos seus carros a observar. Dentro dos habitáculos desfilam fantasias de corpos viçosos escondidos entre saias de varina, de gargalhadas alarves, de permissividade compartimentada. Lá fora, uma felação provocadora, serpenteia a quinze euros de distância.

PSD: 27,7%, CDS: 6,3%

O Dr. Freitas do Amaral é um tipo curioso: abandona o barco depois de ele se ter afundado. Isto não chega a ser oportunismo, é um indício de senilidade. Se é verdade que não se pode cair do chão, então a transferência política deste "pai da democracia" só vem confirmar que "as direitas" estão mesmo no chão. Está montado o palco para a cavalgada épica de Pedro Santana Lopes em direcção a uma derrota digna.

(Remember the days of the) old schoolyard

O Engº Sócrates, como bom português que é, insiste no tema da saudade na sua campanha eleitoral. Desenterrou os seus antigos companheiros de armas e agora, sonhando com uma maioria absoluta, quer transportar-nos até aos nossos dias de escola primária, mendigando votos com argumentos como "vá lá, tou t'a pedir". O Dr. Freitas do Amaral, que é um humanista, já foi seduzido por essa retórica alicerçada em nostalgia. Quantos mais virão?

27.1.05

Equidade

Há quem goste do Woody Allen (ou do "Woody Allen"), dos filmes de Woody Allen, ou até "de cinema". Há ainda quem goste de uma série de filmes que por acaso foram escritos e realizados pelo Woody Allen. Eu incluo-me nesta última categoria. Mesmo porque não faço a menor ideia do que significam as outras três. Talvez por ser um apreciador acidental dos filmes do homem, não consegui lidar com o cabelo oleoso da Melinda, na sua versão neurótica, e todo o filme se desmoronou a partir daí. Da ficção exige-se uma certa equidade, ou proporcionalidade. Uma mulher neurótica deveria sempre ser desenfreadamente atraente, ou ter qualquer outra qualidade gritante como contrapeso da sua debilidade nervosa, sob pena de parecer demasiado real.

O limiar do luxo

Nenhuma marca dita "de luxo" pode alargar a sua base de clientes a outras classes sociais, apenas porque estamos em período de saldos. Esse tipo de práticas predatórias só pode ser encarado como uma traição. O comprador de luxo não precisa de descontos de 70%, nem de começar a pagar em 2006. Melhor dizendo, o comprador de luxo não precisa. Não tem necessidades, tem caprichos e nesses caprichos não se incluí andar vestido como o marido da lojista (ou como a própria lojista). Há algo de muito pouco aristocrático nisso.

26.1.05

Inocência perdida

No passado, dei-me ao trabalho de ensinar palavras novas aos meus sucessivos telemóveis, de os educar, de fomentar a interdependência. Hoje em dia, já não me dou ao trabalho. Limito-me a subverter o que já sabem para dizer o que quero. Não vale a pena apostar em relações condenadas.

Incongruências

Há algo de profundamente errado quando alguém tenta extinguir angústias agarrando-se com sofreguidão a copos de vinho: não existe qualquer vestígio de urgência no vinho. Aparentemente, só nova-iorquinos sofisticados nos filmes do Woody Allen é que o tentam. Só eles é que esperam que outros adultos fiquem bêbados quando bebem "demasiado vinho". Como qualquer pessoa lhes poderia explicar, depois da ingestão de "demasiado vinho" não há soluções, só um sono opressivo.

25.1.05

Na cidade

"I've always been drawn more toward reality than fantasy, because it seems to me that realism is endlessly interesting and finaly indeterminable. Realism is a species of fantasy that's much more integrated and hard-core than fantasy itself. If you are ready to come to grips with the inevitable slipperiness of most available facts, you come to recognize that realism is not a direct approach to the truth so much as the most concentrated form of fantasy."

[Norman Mailer, The Spooky Art: Some Thoughts on Writing, 2003]

24.1.05

Meta-ficção

Ia sentir a falta dela. Não que fosse uma grande mulher ou que lhe tivesse transmitido algo de particularmente relevante. Não. Ia sentir a sua falta, porque ela tinha dedos nervosos e gostava de encostar a cabeça na sua. Porque insistia em dizer "jogar o futebol". Porque o seu futebol era a memória de uns "rapazes bonitos" a correrem atrás de uma bola, em calções, num campo que ficava nas traseiras da sua casa, em Espinho. Porque tanto o campo como a casa já não existem. Porque a tinha feito chorar há muitos anos atrás e nunca lhe tinha pedido desculpa. Porque era frágil. Porque carregava consigo um passado filigrânico. Porque escondia desastradamente a melancolia. Porque se despedaçou quando caiu. Porque "até o Sr. Almeida chorou" quando a viu sair de maca. Porque insistia em não largar a sua mão quando o segurança brasileiro veio dizer-lhes que a hora das visitas tinha acabado. Porque tentava afastar os demónios escrevendo textos auto-biográficos, antes da operação. Porque nalgumas frases desses textos era impossível saber se falava dela ou de ele próprio. Porque a morte se passeia entre a espera e a esperança.

21.1.05

Viagem ao fim da noite


Aqui há uns tempos decidi atravessar o centro de Lisboa a pé às cinco da manhã. No fim da noite, o rumor abranda e ficamos a sós com vestígios monolíticos do dia. Instala-se, por entre o silêncio, a ilusão de liberdade. É um desafio para quem, como eu, tem fracas referências filosóficas, ter uma cidade só para si. Tive vontade de partir coisas e abrir portas.

Património

Suspeito que este conceito de "valores que integrarão as nostalgias do futuro" ou, como diz o Lourenço, de património "que se constrói", não quer dizer nada. Ou então estou com um problema grave porque acabei de descobrir que os Cult tornaram-se uma dessas tais nostalgias depois de ter passado a minha adolescência cuspir sangue cada vez que os ouvia. Agora continuo a fazê-lo, mas vejo-me impelido a praticar a penitência com os olhos postos no horizonte.

20.1.05

Sandinista!

Quando cortamos o cabelo, o vento na sua vertente mais intimista desaparece. É substituído pelo frio nas orelhas, que é das maleitas mais ridículas que nos podem atormentar. É exactamente por isso que eu ando a adiar um corte: não quero ter frio nas orelhas. Sinto que há algo de heróico nisto, mas também algo de profundamente estúpido. A vida é irremediavelmente dilacerante.

Sinais

Uma pessoa chega à conclusão que precisa de sair de Lisboa quando dá por si a tentar convencer-se de que, como já está atrasada, não vai ter tempo de cortar as unhas, apenas de apará-las.

19.1.05

Limites

"Um dos problemas da cultura conservadora é esta incapacidade em aceitar a contemporaneidade, os valores correntes que a constroem e compõem; é a incapacidade de ler, amar e admitir, no dia-a-dia, os valores que integrarão as nostalgias do futuro."

Manuel Graça Dias - Uma Tela Original, O Homem Que Gostava de Cidades, 2001.

Caranguejos

Os pensionistas de Lisboa parecem ter medo da cidade que lhes escorreu por entre os dedos. Talvez por terem deixado pedaços de si próprios em lugares que o tempo fez ruir, transformando-os em repositórios anacrónicos do vazio urbano. Passeiam-se olhando repetidamente por cima do ombro, receando as intenções de uma proximidade sinuosa, desonesta. Enquanto esperam para atravessar uma rua, na segurança morna da sinalização, agarram-se a qualquer coisa que os impeça de cair para o meio da estrada, não vá o presente, que os ataca sempre pelas costas, empurrá-los para debaixo de um carro. Assistem pesarosos ao desfile que os vai enterrando no passado.

18.1.05

Garça Real

Dos pés masculinos pode-se sempre supor o pior, sem que isso tenha qualquer relevância. É admissível encontrar um homem descalço em qualquer contexto, seja ele adequado ou não, e resolver o assunto recorrendo ao paternalismo. Dos pés masculinos não se espera (ou eu não espero) qualquer graciosidade, e muito menos civilidade. São um caso irremediavelmente perdido.

Dos pés femininos já não se pode dizer o mesmo. Há uma responsabilidade de conjunto que vem associada ao sexo. Não é sustentável uma mistura de cabelo luminoso com pés gangrenados ou qualquer outro tipo de miscelânea hedionda que só pode resultar numa desagregação da mulher como entidade superior.

Sendo injusto exigir de um pé qualquer tipo de magnificência, o mesmo não acontece com a sua proprietária. Essa magnificência passa também por saber em que circunstâncias é admissível apresentar uns cotos desnudos e se essa condição traz algo de grandioso ao todo ou se, pelo contrário, se limita a chacinar qualquer volúpia dormente.

Eu arriscaria dizer que, fora do areal, o penante feminino totalmente descoberto só pode prejudicar a rapariga que o carrega, mesmo tendo em conta alguns acessórios imorais que se usam nas nossas ruas, mas sobretudo considerando as potencialidades quase ilimitadas do par de sapatos certo, nos pés da rapariga certa.

Enfim, tudo isto para dizer, sem punchline, que sim, tenho uma relação problemática com pés femininos descalços.

Instrumentalização

Confesso que sinto uma certa inveja de pessoas que se apaixonam (ou desapaixonam) como forma de retaliação e não por inércia ou, em casos extremos, por submissão. Aliás, não tenho inveja, tenho medo.

17.1.05

Gostos

Na "Costa dos Murmúrios", a Helena afirma que não gosta de armas. No meio de uma guerra colonial e casada com um combatente, percebo a necessidade de tal declaração de intenções. No entanto, com o advento da pouco linear "democracia", deixou de se ouvir este tipo de afirmações. Hoje em dia, podemos dar-nos ao luxo de não ter qualquer tipo de relacionamento afectivo com "as armas". Não gostamos de políticos, de futebol, quanto muito, de gangs, mas sempre de uma perspectiva sociológica. "As armas" caíram no esquecimento, num vazio semântico. Acho que o último subproduto do mundo ocidental, sem pretensões historicistas, que se via na necessidade de dizer alto e bom som que não gostava de armas era o MacGyver. Talvez o fim dessa mítica série tenha realmente marcado o início de uma nova era de progresso civilizacional.

A verdade da mentira

Na penúria em que temos vivido nos últimos tempos, chega a ser inspirador ver que ainda andam por aí uns estarolas que fazem promessas e as cumprem. Estarolas que, a meio de talk shows requentados, nos dizem "we'll be right back" e voltam mesmo, quase de imediato.

14.1.05

O cais

Depois de dois meses de morte cerebral, o Classe Média reinicia a produção de algo que em muitos aspectos pode ser considerado um sucedâneo dessa mesma morte cerebral, uma vacuidade paliativa. Não se vislumbra neste regresso qualquer ardência, apenas o reconhecimento de que a tímida tentativa de substituição de interlocutores não foi bem sucedida. Há palavras que ainda devem ser escritas para dentro, sob pena de serem servidas com demasiada brutalidade ou inépcia. Aparentemente, continuo a precisar de estar sozinho, sem traições.