27.1.06

Transposição

Um cínico pretensioso e poliglota parte do princípio que as traduções falham e que falham fruto da ignorância do tradutor. Em última análise, está preparado para que essa mesma ignorância latente destrua um livro. No entanto, uma má tradução (ou um mau tradutor) pode salvar um mau livro, recorrendo em larga medida à componente criativa do erro. No caso de "O Grande Salto", traduzido para a Teorema pela Sr.ª D. Maria Augusta Júdice, isso acontece quando, entre diversas transmutações desastradas, a senhora nos explica, numa proverbial e rendentora "N. da T.", que o dub é "um tipo de música reggae marcado por sons estranhos, inesperados e descontínuos". É simultaneamente trágico e tocante ao ver alguém a debater-se em público.

25.1.06

Tragédia Lusa

O portunhol deve ser o único dialecto bastardo do mundo que tem inerente a curiosa propriedade de ser mais embaraçoso para quem o fala do que para quem o ouve.

Blasé

Há meses que, para além do desfilar da paisagem, não me acontece nada no trânsito. Ando a ficar sem referências.

20.1.06

Egocentrismo II

Sendo certo que é suposto termos medo da noite (ou de noite), é igualmente certo que, de noite, é suposto termos medo de nós próprios e não do mundo. Nas sombras não há espaço para seis mil e quinhentos milhões de pessoas, só mesmo para alguns fantasmas e umas fantasias sexuais recorrentes.

Egocentrismo

Não sendo particularmente miserável nem toxicodependente, tenho de admitir que, de uma perspectiva puramente corporativista, o meu principal problema com a miséria e o tráfico de droga é o facto de não me poder passear a meio da noite no interior de edifícios abandonados, sem ter um razoável medo de ser atacado por uns tipos com fraca dentição, provavelmente armados com seringas. A moral, tal como o policiamento, quer-se de proximidade.

19.1.06

Círculo

O resultado prático de estarmos permanentemente ligados uns aos outros, mas cada vez menos juntos, é que a única coisa que nos acontece em grupo é ouvir histórias sobre o que nos aconteceu individualmente. A ilusão da distância faz com que tenhamos de sobreviver sozinhos às nossas próprias ideias.

18.1.06

Morrer na Praia

Tenho o hábito de trocar centenas de euros por livros que não vou ler. Cronicamente indisciplinado, é certo que nunca serei um tipo esclarecido. No entanto, tenho a patética esperança de ficar lá perto: a dois ou três metros das prateleiras.

16.1.06

Plantar uma Árvore

Este fim-de-semana, o que eu fiz pelo mundo foi deixar de responder a toques, kolmis, etc., originários de pessoas com mais de dezasseis anos e/ou com rendimentos brutos mensais superiores a dois salários mínimos nacionais. Para o próximo, talvez comece a separar o lixo ou vá votar.

12.1.06

Onirocrisia

Hoje sonhei que o Elton John me tinha telefonado a dar os parabéns com um dia de atraso e apresentando-se simplesmente como "o Elton". Talvez o facto de estar numa first name basis com o Elton John fosse suficientemente sumarento para a chave da interpretação deste sonho residir nessa estranha relação. No entanto, parece-me que não ter alertado "o Elton" para a data correcta do meu aniversário é o ponto fundamental da coisa. Poderia assumir que não o fiz por ter ficado impressionando com a dimensão planetária do meu interlocutor, numa demonstração clara de insegurança face à imagem de uns implantes capilares de primeira água mas, por outro lado, considerando este tipo de telefonemas mais importante para quem telefona do que para quem os recebe, parece que a questão se resume uma vez mais à minha esquiva nobreza de espírito que aparentemente só se manifesta com uma dose generosa de laxismo pré-consciente.

10.1.06

Olhares Perdidos

Desde o advento do "Sexo e a Cidade" que o mundo se tornou desnecessariamente complicado: as mulheres passaram a andar pelas ruas em pequenos e despreocupados grupos que, protegidos por uma fachada de auto-suficiência, deixaram de cruzar olhares com estranhos.

6.1.06

Tendência

Tive duas namoradas pelas quais me apaixonei porque me deixavam falar. Uma delas era a típica paixoneta de Verão: pele morena, bonita, com uma voz rouca de sedutora que poucas vezes tive a oportunidade de ouvir. Não tinha nada para me dizer e, talvez por isso, me tenha largado à beira da estrada a meio do Inverno, quando eu próprio já tinha assumido tonalidades mais amareladas. A outra montou a armadilha perfeita: fez-se parecer interessante porque me ouvia, estratagema que me deu bastante mais trabalho, mas que acabou por ruir quando eu finalmente me calei. Não foi à toa que, em criança, andei cinco anos no judo sem passar do cinturão branco. Já nessa altura devia ser evidente que nunca me conseguiria defender de quem usasse o meu peso a seu favor.

Turista Acidental II

Não queria com isto insinuar que "o mundo" seja um sítio bom, ou pelo menos melhor do que um spa na Indonésia, queria apenas dizer que a revista é bonita, é uma meta aspiracional válida e é igualmente uma zurrapa editorial, como, enquanto reflexo do zeitgeist, inevitavelmente teria de ser.

5.1.06

Turista acidental

A revista Blue Travel tenta vender uma papa intangível de lazer a que os seus editores chamam "espírito blue". Algo que supostamente correria, dormente, nas veias dos seus leitores, gente ambiciosa, bem vestida, hedonista em regime poseur, decidida a fazer-se à estrada num assomo de romantismo regurgitado e empacotado em vácuo, pronto para ser servido num qualquer recanto paradisíaco "por descobrir", ao preço de 625 euros por noite, sem pequeno-almoço. Gente que gostaria de ver o mundo ou, para não ir mais longe, a rua, como o sítio onde vamos parar quando nos enganamos na porta de entrada da sala de aromaterapia.

Em jeito de manifesto, mais do que abater árvores para publicar má ficção com belas tonalidades Photoshop, o que a malta da Blue Travel podia fazer era procurar combinações improváveis: descobrir destinos de sonho que não fossem hotéis, locais onde "as pessoas que são os grandes protagonistas das reportagens" não fizessem parte da criadagem. Melhor ainda: em jeito de desafio, poderiam mostrar às pessoas como gastar 625 euros por noite em múltiplas estrumeiras espalhadas pelos sítios mais odiosos do planeta, ou até sem sair de casa.

Vício

Um segredo não tem forçosamente de ser terrível, basta ser secreto.

4.1.06

Incrementos

Cada vez mais me convenço que campanhas de prevenção rodoviária realmente úteis não têm forçosamente de passar por obrigar a Brigada de Trânsito a inventar mais um nome mirabolante para uma qualquer "operação" em época festiva. Para reduzir drasticamente o número de acidentes dentro das cidades, bastaria, por exemplo, explicar às pessoas que só vale a pena passar sinais vermelhos quando se vai virar. O trânsito é o habitat natural da racionalidade limitada.

3.1.06

Cegueira

Mais trágico do que as mulheres não verem em nós o que nós vemos, só mesmo não verem nelas o que nós vemos.