2.2.05

Fragmento


[...]
As pessoas pensam que eu escrevi a frase naquela data, mas não. Escrevi-a muito antes. Até lhe digo mais, a primeira vez que o fiz foi em 94.

Mas pintou a mensagem a 20 de Novembro de 2000?
Não. Pintei-a em 99. Passei pelo muro e reparei nuns gatafunhos que alguém lá tinha feito. Estive um bocado a olhar para eles para ver se percebia o que tinham escrito. O único que se consegui ler dizia "Vai pró caralho". Devia ser uma piadinha. Como aquelas que armadilhas escolares em que chamávamos alguém para lhe dizer "Chupa-mos!". Voltei lá passado três dias para pintar a minha frase e nunca mais me aproximei daquela parede.

Então a data não tem significado?
Pois. Não sei o que me deu. Deve ter sido uma coisa... como é que se diz? De fim de século. A revolução ia começar ali. O amor ao lado do vandalismo, uma treta desse género. Para dizer a verdade, começou e acabou ali.

Pode dizer-se que o seu mural é um embuste.
Sim, desse ponto de vista, pode. No fundo queria fazer uma coisa como aquele tipo francês... enfim, acho que era francês. Pelo menos era de um daqueles países onde falam francês. Aquele tipo que fez um quadro com um cachimbo e depois dizia que aquilo não era um cachimbo.

Magritte?
Pois. É capaz. Não percebo nada de arte.

Mas o que o Magritte queria transmitir com esse quadro era a ideia de que...
Olhe, não sei. Como lhe disse, não percebo nada disso. Eu nem sabia o que estava escrito no quadro. Tive de perguntar.

Se esse "amor" não passa de uma invenção, porquê Carina? Porquê esse nome ridículo?
Bem, todas as cartas de amor são ridículas, não é?

Pois. Mas existe uma Carina, ou não passou de um efeito cénico?
A Carina era uma cadela que vivia em casa do vizinho da senhora que me alugava um quarto, quando vim para Lisboa. Era lá para os lados da Artilharia Um. O tal vizinho tinha dois cães: a Carina e o Cambuta. O Cambuta era um pastor alemão. Mau como as cobras. Três meias voltas mordia a dona da casa onde eu vivia. Normalmente fazia-o quando ela ia às escadas de emergência estender a roupa. Aquilo às vezes era chato: a senhora já não era um bebé. Mas enfim, a Carina tinha um terço do tamanho do outro e não fazia mal a uma mosca. Acho que a única razão pela qual não abatiam o Cambuta era porque não queriam dar um desgosto à cadela. Daquelas coisas que se metem na cabeça das pessoas. O que é certo é que ela lá salvou o estupor do cão e eu, quando menos espero, dou por mim a pensar nela.

Parece-me que você, para além de ter umas referências culturais um pouco limitadas, não tem grande jeito para a ficção.
É capaz de ter razão. Sou um mentiroso descrente. Sabe que às vezes sinto a necessidade de fingir que estou sozinho. De andar por aí como se só eu vivesse no cinzento, enquanto o resto do mundo está no preto ou no branco. Mas a verdade é que não há amores falhados na minha vida, nem tragédias afins. Sou um tipo razoavelmente feliz e isso dá cabo de mim. Posso fingir ser um pensador, mas não o consigo fazer com convicção porque o que realmente me preocupa é o facto de passar demasiado tempo no banho.
[...]

2 Comentários:

At 4:51 da tarde, Blogger O Silva disse...

Nem mais, Jorge. Um filme em três palavras falsas, enquanto o banho durar.

 
At 7:50 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Ah... o banho, eterna fonte de inspiração das mentes mais acaloradas e fugidias (já o diria Arquimedes). Não há mulher que nos transporte para paragens mais recônditas que as derivadas do ritmo constante da água a descer-nos incessantemente pela tola abaixo.
Tás em grande, Silva, pá!

Anonymous d'Janja

 

Enviar um comentário

<< Home