Primavera
Apesar do bom tempo dos últimos dias, o sol brando desta manhã pareceu-me uma memória.
O almoço na praia estava a correr muito bem até ao momento em que o empregado me confundiu com um tipo que come uvas com garfo e faca. Nunca mais lá ponho os pés.
Em quinze minutos levanta-se uma tempestade tropical. Pequenos pedaços de hotel levantam voo. O medo espalha-se quando a fragilidade do que nos rodeia se torna evidente. Na insinuação da tragédia, olho para as pessoas com quem partilho o momento e a esperança abandona-me: ninguém ali poderá surpreender, só corresponder de forma deprimente às expectativas. O potencial heróico é escasso. Face a este cenário desconfortável, dou por mim a cair no ridículo de verificar se o telemóvel está operativo. Naquela ilha sem estradas, sem electricidade durante o dia, sem água quente, sem turistas e sem saída, há rede. Há rede e, obviamente, um português pronto para entrar em directo. Podemos não ter direito a salvamentos, mas ninguém privará o mundo da reportagem sobre o nosso desaparecimento.
É abrir junk mail onde sabemos que nos vão pedir os dados do cartão de crédito e esperar não nos sentirmos obrigados a dá-los. Curiosamente, a partir do momento em que também o abismo se tornou virtual, se olharmos demoradamente para ele, ele já não olha para nós, mas sim para a nossa carteira.
Se é do senso comum que os homens usam carros como prolongamentos penianos, será legítimo admitir que as mulheres usam monovolumes como um prolongamento do útero?
Ontem, por volta das duas e meia da manhã, andava uma prostituta brasileira perdida no meu prédio. Eu, apesar de também andar pelo meu prédio a essa hora, não andava perdido. Disse-me, atrapalhada, que andava à procura "do Pedro, um rapaz que vive sozinho, um rapaz solteiro". Se eu fosse um moralista à moda antiga, conviver com prostitutas brasileiras a meio da noite seria coisa para me fazer subir às paredes (in more ways than one, como dizem os outros). Mas não sou. Sou apenas um intriguista da pior espécie: o que me revoltou verdadeiramente foi não saber quem era o tal Pedro.
Há quem viaje para países longínquos com a ideia de conhecer culturas diferentes. Mesmo que, depois do regresso a casa, as tais culturas não passem de episódios anedóticos para alimentar jantares, muitas vezes são o suficiente para satisfazer os nossos anseios mais profundos de desenraizamento. No meu caso, começo a pensar que perco dias a atravessar o globo para me assegurar que a cultura me deixa em paz durante umas semanas, que o mundo permanece mudo, manietado por línguas ininteligíveis, sabores inéditos e paisagens assombrosas. Tudo bem longe de casa, para conseguir manter a experiência do quotidiano sob controle.
Ao fim de uns tempos nos trópicos, torna-se evidente que o paraíso está reservado para as proverbiais serpentes, para os morcegos, para as aranhas e para outros insectos que nos mastigam durante a noite. Para nós não há redenção possível. Na melhor das hipóteses, ficamo-nos pelo desconforto.
Presumo que seja possível habituarmo-nos a qualquer coisa, mesmo a ver alguém a morrer. Presumo que isso seja possível apesar da dor não ser divisível mas sim epidémica. No entanto, não me consigo habituar a ver alguém reduzido à solidão, ao medo. Nunca consegui. Mesmo sabendo que tal como a morte alheia, também o medo é transitório, e que é a existência de um "depois" que nos endurece a pele.
Uma fuga de combustível e uma troca de avião forçada são o suficiente para soltar as histórias de horror e os incómodos encenados com o objectivo de generalizar a revolta. Parada na pista, a cabine do avião fervilha. De repente, temos umas horas de passado em comum, horas que não se esfumaram, imperceptíveis, como as que vão ser ocupadas a dormir durante o resto do voo. Tenho a certeza de que alguém sonhou estupidamente com amizades. Pessoalmente, nem me dei ao trabalho de me levantar, de bufar ou de encetar embriónicas conversas. Não queria ser responsável por desilusões quando pura e simplesmente ignorasse os meus companheiros de viagem enquanto esperávamos pelas malas.
"Se não viesse cá fora lavar as escadas, nem via que estava a chover."