26.3.04

Até já

Parto para o Algarve ficcionado: o Nordeste Brasileiro. Parto para a Vilamoura transatlântica, deixando o Ponto na sua qualidade de último português que ainda não visitou aquela região do mundo (se não me falha a memória). Vou viver 9 dias e 7 noites (?) numa fantasia pré-fabricada, à beira-mar, devidamente acompanhado (sou português mas não tanto) e com uma pseudo-missão: visitar uma irmã que decidiu ir para aquelas terras tornar-se mestra numa qualquer variante da biologia.

Confesso que parto com algum receio que a minha consciência crítica não me impeça de voltar a este Brasil de tios e tias virtuais, que passam férias com uma versão idílica deles próprios. Tenho receio especialmente porque tenho noção que há coisas piores. De qualquer forma, até ao meu regresso, dificilmente haverá novidades no Classe Média. Durante uma semana, vou digerir os posts sozinho, na esperança de não me engasgar.

Realismo

Tal como nos relatos de Aveiro, ao ler o Richard Ford apercebo-me que basta um pormenor sórdido para transportar uma personagem da ficção para a realidade. A densidade humana revela-se no alcoolismo, nas relações extra-conjugais, nos excessos sexuais, na violência, como se só fosse possível distinguirmo-nos uns dos outros através dos nossos maneirismos ao lidarmos atabalhoadamente com a angústia. As imperfeições muitas vezes fazem mais pela nossa identidade do que uma discreta pureza.

Francofonia

Em tempos falei fluentemente francês. Falei francês tão bem ou melhor do que português. Fui um Lutz da francofonia. Hoje em dia, falho no derradeiro teste ao domínio de uma língua: já não consigo levar uma piada a bom porto no idioma do Chirac. Sinto-me forçado a reservá-lo para uma espécie de espectáculo privado, de onde escorracei a oralidade, limitando-me a leituras silenciosas e a enganar os nativos dizendo que só percebo "un petit peu" do que eles estão a dizer, deixando-os à vontade para darem largas à sua capacidade de comentaristas sem escrúpulos. No fundo, vivo acossado por um passado de glória.

Momento passível de psicanálise

Há pouco, um carro da PSP apresentou-se-me pela direita, num cruzamento. Talvez pressionado por um medo inconsciente de uma hipotética ilegalidade escondida no meu passado, cedo passagem, não levantando suspeitas uma vez que estou a agir em conformidade com os ditames do código da estrada. Enquanto os senhores agentes passam por mim, olho para o condutor e a primeira coisa que me vem à cabeça é: «Olha, olha, então não é que este gajo não está de capacete?». E com isto dei à luz uma bela amálgama de recalcamentos...

25.3.04

Gradações do vazio

Nos caminhos do dia-a-dia, é fácil identificar tentativas de aproximação com estranhos, por muito subtis e pouco convictas que sejam. Damos por nós a acrescentar a um "Bom dia!" diário, um "Tudo bem?", ténue sinal de uma vontade de saber mais sobre as vidas que cruzamos repetidamente, do reconhecimento da rotina partilhada.

No entanto, este anseio relacional depara-se com uma reciprocidade de parto difícil, como denota a terminal resposta "Tudo bem?", que muitas vezes ecoa até nós. Pequenos passos como a transformação do tom interrogativo desta réplica, num tom afirmativo, exigem instruções. Precisamos de tempo para deixarmos os outros entranharem-se em nós. Precisamos de tempo para nos desembaraçarmos do vazio.

Salvação

Há uns dias, dois irmãos estiveram a contar-me episódios da sua infância em Aveiro (e arredores), e da frequência de uma escola de província. Estes episódios, onde a rudeza latente na "interioridade" é bem visível, vão desde um espancamento por um bando de pescadores como paga pelo roubo de gelados, até à agressão física levada a cabo por uma mãe alcoólica, em plena sala de aula, no seguimento de um desentendimento entre a sua filha e a rapariga que me relatava o incidente.

No entanto, no meio desta brutalidade ambiental, contaram-me também que existia um hábito de inscrever as crianças no conservatório, onde estes dois aprendiam a tocar clarinete e piano. Fiquei com a ideia que, no caso destes dois irmãos, a educação artística os salvou do Portugal profundo.

24.3.04

Info-exclusão

Pedem-me para eu ensinar uma pessoa nos seus cinquentas a usar as funções básicas de um computador. Quando pergunto o porquê desta necessidade súbita, dizem-me que essa pessoa passou a ter que usar uma máquina que é uma variante de um vídeo caseiro e não consegue entender o seu método de funcionamento. Eu perguntei porque é que ela não lia o manual. Parece que isso não resolve o problema. A incompreensão vem de trás. Ela não percebe o raciocínio subjacente ao que está escrito no manual, e por isso queria começar a usar um computador para perceber a "linguagem" destas máquinas modernas. No meu cinismo, só consegui dizer que essa linguagem era o inglês. Há um desconhecimento recíproco, dos dois lados do generation gap.

23.3.04

Le bateau ivre

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Lisboa à noite, fotografada do espaço.

Esta noite, o vento fez Lisboa adormecer embriagada num mar revolto de escuridão.

Diferenças

Há uma diferença importante entre o Sharon e o terrorista de cadeira de rodas: o Sharon tem que se submeter a eleições, ou outro tinha um cargo vitalício. A acreditar que «cada país tenderá a participar na luta contra o terrorismo na medida dos seus interesses», o Sharon irá desaparecer (em teoria) quando os israelitas acharem que ele não serve esses interesses.

Medo

Pela primeira vez transferi um ficheiro entre dois portáteis, via infra-vermelhos. Ao aproximá-los apareceu uma mensagem no meu a dizer "There is another computer nearby", e depois fiquei a assistir à cópula. Não sei o que é mais assustador: a promessa de guerra total no seguimento da morte do terrorista de cadeira de rodas, ou esta computação humanizada. Já não falta muito para começar a acreditar na dimensão profética dos filmes do Terminator. Aliás, só falta mesmo aparecer um ex-bodybuilder vindo do futuro.

22.3.04

Relativismo

Há alturas em que dois dias em Cabanas (de Tavira) não ficam aquém de sete anos no Tibete, em que voltamos à base a acreditar desesperadamente que não vamos reencontrar a nossa vida. Este fim-de-semana foi uma dessas alturas, sendo que a única novidade que me esperava em Lisboa era o vendaval.

Apesar do Algarve ficcional se ter mudado para o Nordeste brasileiro, ainda há praias no Algarve geográfico onde é possível revisitar memórias esquecidas de verões pontuados pelas romarias de pais em direcção aos concertos do impenetrável Julio Iglésias.

Enganos

As desilusões mais longínquas que me ficaram na memória estão todas relacionadas com confrontos com a realidade, mais precisamente, com a inexistência de certas sinestesias geradas pelo meu imaginário infantil. Entre outras, lembro-me de ter ficado desolado quando descobri que me ia sujar e magoar na dureza do solo, se me atirasse para o meio de um prado verdejante, não me valendo de nada o sedoso ondular da erva. Lembro-me igualmente da sensação desagradável que me ficou na boca, depois de descobrir que as borrachas que cheiram a morango não sabem a morango, e nem chegam sequer a ser comestíveis. A perda da inocência deve ter começado com estes pequenos episódios.

Ui!

Agora é que não há PSOE que nos salve...

19.3.04

Ciclismo pós-moderno

Já por várias vezes participei numa alarvidade de geração espontânea que consiste em entrar numa dança ao melhor estilo da dupla Lance Armstrong/José Azevedo, onde dois automobilistas, depois de breves momentos de galanteio, resolvem envolver-se numa cerimónia onde "puxam" alternadamente um pelo outro, como se batedores do Presidente da República fossem, com o objectivo de manter um velocidade potencialmente criminosa.

Este momento National Geographic, é mais um exemplo da animalização do português quando se encontra atrás do volante. No entanto, não querendo entrar pela análise da evidente boçalidade deste ritual de acasalamento, há outros aspectos relevantes neste fugaz relacionamento, e que nascem precisamente do reconhecimento pelas partes envolvidas dessa mesma boçalidade.

A imoralidade subjacente a este baile confere-lhe características semelhantes às dos envolvimentos extra-matrimoniais (ou extra-qualquer relação a tempo inteiro), ou às one night stands. Nestas ocasiões, a necessidade de não deixar rastos obriga a que tudo seja precário, desde o repentino desaparecimento da ética, até ao envolvimento impulsivo alicerçado numa procura imprudente de emoções arrebatadoras, passando pela própria integridade física. Não há amor, não há lágrimas, não há despedidas. No final, vai cada um para seu lado, na esperança de não ter contraído nenhuma doença esquisita.

Confissões

O famigerado registo confessional está algo ausente do Classe Média, o que não acontece em diversos outros blogs cujo o estilo se presta a uma transcrição em discurso directo de uma certa vida interior dos seus autores. Não sei se tentar reduzir esse desequilíbrio traria alguma mais-valia a este sítio, mas ao reflectir sobre isso, apercebo-me que nos últimos tempos tenho vindo a atravessar um surpreendente momento de apaziguamento espiritual, o que torna difícil qualquer confissão particularmente purgativa. Sendo assim, o Classe Média vai continuar a ser preenchido com o meu remediado mundo, e não directamente com o meu remediado ser.

Breves notas sobre a Europa

Oiço na rádio uma rapariga a mencionar "fontes próximas de Bruxelas". Este tipo de designação tem o seu quê de ambiguidade: uma fonte próxima de Bruxelas é alguém que vive num raio de 50 km da cidade, mas que conhece bem os seus meandros? Alguém que se identifica intelectualmente com a causa europeia? Ou será uma pessoa que circula pelos corredores do poder europeu, podendo essa pessoa ser desde o porteiro do edifício do Parlamento Europeu até ao Romano Prodi? Fica a dúvida.

De seguida, a menina informa-me que vai ser criado um cargo de coordenador da luta contra o terrorismo, a nível europeu, e garante que o futuro ocupante deste posto já é tratado por "Sr. Terrorismo" (pensava que já existia um). Talvez transformando organismos europeus em personagens de BD se consiga aproximar esses mesmos organismos do povo, tornando-os mais apelativos tanto a miúdos, como a graúdos, e assim evitando as tais abstenções recorde na eleições europeias. Continuamos sem saber o que os senhores andam a fazer, mas ao menos é mais fácil identificá-los na televisão, o que é quase tão útil.

18.3.04

Aviso

Eu não sou grande fã da Anabela Mota Ribeiro, tanto na sua faceta de divulgadora cultural e entrevistadora ternurenta, como na sua versão sex-symbol, mas reconheço que a rapariga se esforça para que os homens bem-pensantes também prestem atenção ao que ela diz, e para que as mulheres consigam ir além do seu guarda-roupa "giríssimo" da Fashion Clinic. Este facto, só por si, já a coloca num plano relativamente elevado em relação ao restante star sytem nacional.

No entanto, depois de ver alguns episódios da série dela, vejo-me forçado pela natureza intrinsecamente impulsiva e sexista da masculinidade, a fazer um reparo à apresentação da Anabela: a mesma pessoa que lhe disse que ela era lindíssima e, como se isso não bastasse, sofisticadíssima, também a devia avisar para ela esconder os seus braços gordinhos e pálidos, porque estragam o quadro.

Custos indirectos

Um dos preços da fama é a deceptividade do olhar. Ser "um famoso", implica que as tentativas de estabelecer uma ligação com alguém, através do olhar, são feridas de morte pela banalização ontológica provocada pela fama. Conhecemos os seus corpos, as suas vozes, muitas vezes as suas histórias, e nalguns casos uma parte das suas intimidades. "Sabemos" que o Joaquim Monchique é um cocainómano e que o Herman José, tal como o Michael Jackson, gosta de passar os seus tempos livres a subir às árvores com crianças.

Este pseudo-conhecimento chacina todos os elos normais que "um famoso" possa ter com o resto do mundo, obrigando-o à ostracização no seu próprio meio, limitado a relações fantasiadas em technicolor. O nosso olhar sincero, que procura a reciprocidade, está reservado para seres palpáveis, para desejos materializados, reais. Para as vítimas da fama, guardamos um olhar clínico, muitas vezes a roçar o necrófago, negamos-lhes a possibilidade de uma afectividade anónima.

17.3.04

Tratamento da informação

Sinto-me incomodado com o facto da esquerda estar a tentar colher dividendos políticos de um brinde distribuído pelo terrorismo. Num mundo onde o cidadão comum tem como verdade irrefutável que o político é um aldrabão, acho espantoso atribuir à trapalhada do PP, após o atentado, a responsabilidade pela reviravolta eleitoral.

Ao contrário destes senhores, eu acho que o que o Mexia escreveu é para ser levado a sério (em traços gerais): manifestações anti-guerra já tinha havido, trapalhadas e falsidades bem piores também (e.g. Prestige), e no entanto o PP caminhava confortavelmente para a vitória. O que tirou os espanhóis de casa para irem votar foi algo bem mais primário e instintivo, e por isso mesmo facilmente direccionável. O mérito da esquerda foi de ter acabado uma coisa que os terroristas começaram. A legitimidade ninguém lhes tira, mas vamos lá ver se, para além de aceitar e dar bom uso a ofertas, o PSOE do Zapatero tem capacidade para conquistar alguma coisa nestes quatro anos.

Serviçais

O advento da terciarização, da "economia dos serviços", implica que uma parte cada vez maior da população activa vive em parasitagem. O que é produzido, além de muitas vezes imaterial, dilui-se nos produtos dos outros, não tem identidade própria. Os relacionamentos profissionais distinguem-se pela possibilidade ou não de recuperar o IVA. No fundo, vivemos num ecossistema onde, no nível mais básico da cadeia alimentar, existe uma legião de fanstasmas que nos tira os pêlos púbicos do ralo da banheira (sobre o tema aconselho uma leitura deste livro), e no nível mais elevado vende-se consultoria estratégica.

Sobras

Voltar a casa, no final da noite, é um momento francamente depressivo. Atravessamos ruas transformadas em pontos de fuga para almas à deriva, ruas que se agrupam num deserto reflexivo, deixando-nos a sós com a nossa substância mais feroz. Nesses momentos, não sei se gosto do que vejo em mim e nos outros. Não sei se gosto da nossa esborratada humanidade.

16.3.04

Hard-Rock

Ontem fui pela primeira vez ao Hard Rock Café dos Restauradores. A única coisa vagamente parecida com Portugal era o porteiro (?!?!) que ficou muito incomodado por eu ter aberto a porta sem a autorização dele, e depois me perguntou, com cara de poucos amigos, se eu ia para o bar ou para o restaurante. No momento, fiquei sem saber qual seria a contra-senha (se é que ela existia), por isso disse a verdade, desarmado: "vou ao bar".

Lá dentro, uns amigos que já tinham estado no local anteriormente, disseram-me que a cerimónia da dúvida metódica era habitual, mas com outras variantes. Além da minha versão, também podíamos deparar-nos com um "loja ou restaurante?", um "loja ou bar?", "só loja?", "só bar?", etc. Em todas elas a resposta certa não é clara, o que implica uma pausa para reflexão algo rídicula, mas uma vez que qualquer que seja a alternativa escolhida, o cartesiano senhor faculta-nos o acesso ao interior do estabelecimento, sou levado a pensar que estas perguntas são bem mais densas do que à primeira vista parecem. É claro que ele pode simplesmente estar à procura da única resposta errada: "vou só à casa de banho, mas não me demoro".

15.3.04

Intimidade

A intimidade é um refúgio negociado com o mundo, onde arquivamos as nossas inseguranças. Além das nossas, guardamos também algumas dos outros, para a troca. Desta forma, tornamos íntimo aquilo que nos torna vulneráveis, que nos despe em público, e construímos fronteiras morais entre nós e os outros.

Criatividade

Este fim-de-semana perguntaram-me como é que eu conseguia ter um blog se não andava de metro. Realmente, admito que há segundas-feiras em que só mesmo uma viagem na linha verde (especialmente ali entre a Alameda e o Cais do Sodré) salvaria este blog...

Cultura popular

É curioso ver como certas pragas civilizacionais se desenvolvem em nós, beneficiando do tal ambiente quente e húmido propício ao desenvolvimento de parasitas e, acabando o período de gestação, saem à rua para se propagarem. Uma dessas pragas é visível no pensamento do automobilista português médio, que considera ser bom ter avenidas largas porque assim tem mais espaço para poder parar em segunda fila. Depois de demorarmos o dobro do tempo habitual a percorrer uma avenida, graças ao senhores que por estarem a trabalhar inventam um regime de excepção, torna-se evidente que muitas vezes não passamos de um veículo transmissor de uma portugalidade enferma.

12.3.04

Mil

O misticismo da palavra/número mil, não está associado a uma noção infantil de infinito que optamos por perpetuar, mas sim ao lirismo desse mesmo infinito. A poética da imensidão absoluta que reside na palavra mil nasce no facto de ela apenas ter apenas uma sílaba e de acabar em "éle", o que é bestialmente conveniente para compor uma rima, ou a letra de uma canção, e que assim se transformou em mais uma porta para a entrada da transcendência nas nossas vidas.

Velocidade

Ao circularmos a alta velocidade dentro da cidade, fazemo-lo no que seria uma falência estatística. Não somos mais do que a encarnação veloz de uma probabilidade reduzida de sobrevivência. O nosso cérebro não tem capacidade de computação para nos permitir ter consciência da multiplicidade de perigos que espreitam na efervescência citadina, e assim avançamos para a injecção de adrenalina, como se naquele momento o mundo se reduzisse a uma imagem fugaz no nosso campo de visão. Infelizmente, nem a realidade respeita o nosso desconhecimento, nem a inconsciência dita as leis da física.

11.3.04

Contingências

Aqui há uns anos, um senhor, ao saber que eu era canhoto, disse-me com candura que uma das suas filhas também o era, e que assim que o descobriram, a primeira coisa que fizeram foi levá-la ao médico para ele a curar. Na altura, achei que isto era mais um exemplo de uma alarvidade produzida pela ignorância popular. Hoje em dia, compreendo o homem.

Apercebendo-me que ponho invariavelmente as chaves do carro no bolso esquerdo da calças, e que ao sair de casa levo sempre coisas na mão esquerda, o facto de ser canhoto restringe diariamente a minha mobilidade ao impedir-me de entrar no carro sem desmontar a parafernália que carrego. Esta característica aparentemente inócua, tornou-se apenas mais uma irritação matinal que infelizmente vai continuar comigo, mesmo que eu passe a usar o sistema de transportes de Lisboa, ao contrário do que o Dr. Santana Lopes me anda a vender.

Nota: presumo que o mesmo se passe com as pessoas dextras, mas o rigor científico não é para aqui chamado...

10.3.04

Esquecimento

Ontem, enquanto enganava o meu cão com um sonho repentino de liberdade, reparei que em noites enevoadas, as nuvens baixas que vagueiam por cima das cidades formam uma cúpula alaranjada, uma concavidade inerte que reflecte a luz difusa que derrama das ruas, das casas, dos carros. A noite acolhe os seus passageiros, como se tivesse ficado para trás uma réstea de dia.

Paradoxo

A natureza paradoxal dos relacionamentos amorosos deixa-nos a braços com um dilema: como coordenar a necessidade de ultrapassar dificuldades ao lado do outro, para tentar uma almejada consolidação de laços afectivos, com a ideia de que os nossos "companheiros" seriam as pessoas que menos problemas nossos deveriam ter que digerir?

Esta duplicidade aparentemente inconciliável levar-nos-ia a lidar com dúvidas e mágoas pessoais na mais pungente solidão, uma vez que só nos permitiria procurar apoio no outro quando essas dúvidas pudessem ser partilhadas, o que é em muitos casos impossível. Também por esta via o egoísmo assassina o amor.

Entranhou-se

Na segunda-feira, vi quatro programas seguidos na 2:. Comecei com uma série levezinha e agradável pré-jantar (tão leve que nem me lembro do nome, e não me vou dar ao trabalho de o descobrir), um mergulho na cultura tal com a Anabela Mota Ribeiro a vê, uma corrida informativa, e finalmente o "Sete Palmos de Terra", altura em que me apercebi que incrivelmente nunca tinha visto os primeiros 2-3 minutos de um episódio da série. Não sei o que o Manuel Falcão e companhia andam a fazer, mas à segunda já me agarraram...

9.3.04

Pequenas emancipações

No dia da mulher, vendo-as transformadas numa abstracção, a minha condição intrinsecamente terrena e sexista faz com que esse talvez seja o dia em que me sinto mais afastado delas. No entanto, nem sempre esta distância é tão mítica. Há uns dias apercebi-me de uma forma de distanciamento entre os sexos, bem mais corriqueira: achei curiosa a forma orgulhosa e esvoaçante como as mulheres saem do cabeleireiro, por oposição ao desconforto cravado no rosto de um homem que acabou de cortar o cabelo. A campanha pela libertação também vive de pequenas vitórias, de ataques cirúrgicos.

O peito

No debate que a SIC Notícias organizou a propósito do dia mundial da mulher, alguém relembra que nos anos 60 as teorias dominantes defendiam que a amamentação era desaconselhável e que hoje em dia o «peito é de novo importante». Este postal ilustrado foi usado para exemplificar a preponderância da masculinidade, até na ciência. Realmente seria difícil lembrar-me de algo mais viril do que uma luta de quatro décadas pela importância do peito feminino, mas este exemplo remete-nos para um combate valoroso em defesa de ideais masculinos oprimidos, e não por uma emancipação da mulher. Fiquei baralhado.

Equívoco

A Mafalda Veiga, com a sua sentimentalidade lavadinha, parece ter construído uma carreira em torno da possibilidade de ser uma versão feminina do Jorge Palma.

8.3.04

Yes man

Ontem, a ver a "Quadratura do Círculo", finalmente consegui perceber porque razão só consigo sentir desprezo pelo desempenho do José Magalhães neste programa. Durante anos pensei que seria pela sua postura arrogante, pelo seu discurso falacioso, por ser um político de carreira (na pior acepção do termo) ou por qualquer outra razão menor deste tipo, mas finalmente consegui reduzi-las todas a uma só: o seu seguidismo cego.

Enquanto o Pacheco Pereira e o Lobo Xavier se apresentam como tipos que têm determinados valores e só depois se identificam com um partido que teoricamente defende esses mesmos valores, o José Magalhães parece que foi contratado pelo PS a recibos verdes e é forçado a bater-se pelos valores da sua empresa, sob pena de ir parar indefinidamente ao fundo de desemprego. O homem é uma verdadeira vítima do planeamento central.

O Apocalipse

Tenho notado um burburinho, uma veneração mitigada da Diane Keaton no "Something's Gotta Give". Este fenónemo é, na minha opinião, de difícil digestão uma vez que o máximo que se pode dizer de bom da rapariga neste filme, é que os anos lhe foram francamente favoráveis. Tudo o resto fica-se pelo overacting.

No entanto, a Diane, na pele da Erica Barry, pode ser vista como um corolário mitológico do papel desempenhado pela Scarlett Johansen, como Charlotte, no tal ideário da irmandade/seita que foi criada a partir dessa mesma personagem. Mais concretamente, a Diane Keaton representaria uma versão equivalente ao Apocalipse, na fé professada por essa congregação.

Tal como no livro bíblico onde Cristo triunfa sobre as forças do mal, a Erica Barry representa o mito da salvação, no caso de, mesmo levando uma vida beata, não nos cruzarmos com uma Charlotte. Se tudo falhar e não conseguirmos cultivar um estilo de vida que nos traga a filósofa loira de vinte anos, é importante tentar enveredar por esse caminho, já que em jeito de compensação podemos receber a escritora milionária, sofisticada, bonita e vulnerável, de 50 anos. No fundo, andamos todos à procura da Gilda.

Nota: Por falar na Gilda, a Amazon inglesa vende DVDs do filme a £ 7.99.

5.3.04

Hiper-memória

Na ex-Pastelaria Roma, um grupo de senhoras impecavelmente arranjadas fala da Gilda. Cada vez que o nome da personagem da Rita Hayworth é proferido, é seguido de uns segundos de homenagem silenciosa, de olhares melancólicos direccionados ao vazio. Afinal de contas: "There never was a women like Gilda!". O cinema quebra uma espécie de barreira do som da memória.

Uma pastelaria na bruma

No fim-de-semana passado, estive num dos sítios mais surreais da minha vida: o McDonald's da Avenida de Roma, ao lado do cinema Londres. Este estabelecimento abriu em 2000, nas instalações da antiga Pastelaria Roma, que era um dos ícones daquela zona desde 1965. Tal como na "Casa na Bruma", os antigos residentes da pastelaria recusaram-se a abandonar o local, iniciando uma tentativa de reconquista do espaço que lhes pertencia.

Hoje em dia, o que resultou dessa reconquista é uma mistura verdadeiramente estranha: no meio dos plásticos, das cores garridas e da velocidade do McDonald's, estão sentados grupos de pensionários, algo fantasmagóricos e indiferentes à mudança de cenário, que continuam a reunir-se, intemporais, como se "o mercado" não lhes tivesse levado o passado. Apesar de no McDonald's não existirem torradas, nem suspiros, nem engraxadores, eles continuam a sentarem-se nas mesas, com vista para a rua, ornamentados com os seus ouros e casacos de vison, preenchendo uma folha de presenças mental, à espera.

4.3.04

Micro-clima

Ninguém corre no meu bairro. Para além do ocasional cão que o faz por imposições da evolução biológica da sua espécie, e do condutor que circula em velocidade excessiva porque ainda não se apercebeu das regras implícitas deste gueto, toda a gente caminha com uma cadência certa, pausada, segura. As pessoas que por ali andam, percorrem um trilho com intencionalidade, não andam à deriva. Não há movimentações supérfluas. Deslocam-se seguindo um qualquer desígnio superior, irrefutável. Não vivem as ruas.

Ninguém se perde em Lisboa, e dá de caras com o meu bairro. Não é possível chegar lá por engano. A minha casa está fora do caminho da aleatoriedade. Vivo no centro da cidade, mas longe do seu pulsar. Vivo numa espécie de placa central civilizacional, que é ocasionalmente atravessada, contornada, mas que só é frequentada por quem lá estacionou o carro e não paga parquímetro.

3.3.04

Mais confusões

Na lógica de alguém para quem um jantar sem uma mulher é um desastre, o que é verdadeiramente desastroso é uma mulher não ser o próprio jantar.

Ainda o Avelino

O João Morgado Fernandes, no seu Terras do Nunca, fala da «cadeia de solidariedades, de cumplicidades» que basicamente permite a tipos como o Avelino Ferreira Torres fazerem o que quiserem, no seu cantinho de Portugal profundo. O JMF acha que esta cadeia é o aspecto verdadeiramente relevante deste glorioso episódio, sendo a boçalidade do Avelino totalmente secundária. Eu pessoalmente acho que a relação entre estas duas perspectivas não é só hierárquica, é uma relação de causalidade: a cadeia não só permite a existência dos Avelinos nacionais, como os gera. Eu não lhe chamaria é cadeia, acho que consanguinidade é muito mais adequado.

Amores urbanos

O romantismo urbano está alicerçado na espontaneidade, nas tentativas aparentemente injustificadas de estabelecer elos. A solidão que povoa os silêncios citadinos impele-nos para a sinceridade, empurra-nos em direcção a vidas alheias, contrariando a tendência para a sofisticação, que à partida garantiria a nossa sobrevivência na urbe.

2.3.04

Criatividade

Como li há tempos, a verdadeira tragédia humana é nascermos a saber que vamos morrer, mas sem saber quando, nem como. Não admira que nos agarremos a Deus, à ciência, à filosofia, ou mesmo à ignorância, para tentarmos viver além da morte.

Ser radical

Há uns anos, um sketch de auto-promoção de uma rádio percorria uma série de definições do que é ser radical. Entre outras, um jovem qualquer dizia que «ser radical é conhecer os seus próprios limites e ultrapassá-los». Hoje de manhã vi uma senhora radical, não tanto por ultrapassar os seus próprios limites, mas por ultrapassar os limites das convenções sociais, ao levar a estética do saco de plástico fino para níveis estratosféricos. A senhora não se limitava a passear com um saco (de papel) da Zara, andava com um saco da Zara metido dentro de uma mala de mão, com um formato exactamente idêntico ao de um saco da Zara, mas feita de plástico semi-rígido, totalmente transparente. No fundo, seria uma espécie de equipamento de chuva para sacos de plástico finos. Se isto não é ser radical, não sei o que será.

Correr

Correr na rua armadilha a nossa fachada de impenetrabilidade perante estranhos. Uma corrida apresenta-nos, aos olhos do mundo, como alguém vergado pela vertigem dos dias, incapaz de lidar com um tempo à deriva. Movimentos exuberantes não fazem mais do que expor a nossa intimidade.

Ingenuidade

Não sabia que existiam tipos como o Avelino Ferreira Torres à frente de autarquias. Devo confessar que fiquei assustado com esta descoberta.

1.3.04

Pap' Açorda ou o livro de reclamações

No sexta fui a este estabelecimento de renome da cena gastronómica lisboeta. Depois de ter levado com os condicionamentos dos turnos quando tentei reservar uma mesa para as 21:30, acabei por marcar o jantar para as 22:30. Cheguei quando me mandaram. Ao entrar, deparei-me com uma fila de quinze pessoas que esperavam pela mesa que tinham reservado. Fiquei uma hora à espera, e lá me arranjaram uma. Felizmente, também eu tinha reserva. Duas horas depois, satisfeito com o repasto, apresentaram-me uma conta modesta de 56 € por pessoa. Lembrei-me de ter lido nesse dia que o preço médio de uma refeição no Arzak (um três estrelas da Michelin em San Sebastian) ronda os 80 € - 100 €, sem vinhos. No nosso caso o vinho custou 10 € por cabeça.

O Pap' Açorda é uma fogueira das vaidades provinciana. É um pedaço de Nova York, escondido no Bairro Alto, cheio de portugueses vindos da neve e do Brasil. A palhaçada das reservas é inaceitável. O serviço, com a sua tonalidade de homossexualidade agressiva disfarçada de profissionalismo, fica-se pelo adequado. A comida estava muito boa. O preço é um roubo. Em Portugal, felizmente, não faltam sítios onde se pode comer tão bem ou melhor do que no Pap' Açorda, com um atendimento agradável e verdadeiramente profissional, por metade do preço (pelo menos).

Eventualmente até podia pensar que tinha tido azar na noite, mas por 56 €, não só não posso ter azar, como tem que me sair o totoloto cada vez que abro a porta do restaurante. Foi por essa razão que não pedi o livro de reclamações. A minha disponibilidade para dar lições a quem não está interessado em aprender, é inexistente. Sendo assim, prefiro optar pela solução lógica para os meus problemas: não voltar a pôr lá os pés.

Óscares

Considerando que os Óscares são o equivalente da indústria cinematográfica a um encontro anual de uma multinacional para distinguir empregados do ano, atribuir prémios de produtividade, anunciar promoções e fazer um bocadinho de marketing pelo caminho, ficar acordado uma noite inteira para ver a cerimónia faz tanto sentido como ficar a ver o Bill Gates a distribuir prémios aos seus empregados, em directo, e comentado pelos tipos da CNBC. Parafraseando o Billy Cristal no seu sketch de apresentação do evento, aquilo vale pelo Botox.

Mediocridade

Há uma coisa que me irrita particularmente no jornalismo de telejornal: todas as "investigações" acabam no preciso momento em que é possível insinuar que alguém tem a culpa de alguma coisa. Já que temos que levar com uma hora e meia de entulho, gostava de ver alguém ir além do primeiro patamar numa hipotética cadeia de causalidade, ou mesmo chegar a uma fase onde se tornasse evidente que não é alguém que tem a culpa, mas sim alguma coisa. Incomoda-me ver a humanidade reduzida a uma espécie de vácuo binário de digestão fácil.