31.5.05

Autoria

Ultimamente, lá de fora e cá dentro, têm sido altamente valorizados filmes que não arriscam teorias sobre a realidade, que não fazem julgamentos e deixam os seus protagonistas impunes, que se limitam a ser descritivos, mesmo que subtilmente pessoais, que nos deixam a sós com um determinado mundo. Vende-se o advento da ausência de explicação.

Em Portugal, onde tudo é igualmente inexplicável, faz-se cinema de autor, filmam-se conceitos, muitas vezes desarticulados e egoístas. Este género de cinema tem dois tipos de problema: por um lado não é sobre a minha inefável existência, por outro, produz obras destas, em jeito de alegoria iniciática. A autora em questão chama-lhe "féerie", eu cá chamo-lhe uma bela trampa.

30.5.05

The way we were II

Ocorreu o casamento. Para além dos noivos, reencontrei umas quantas pessoas que também já não conhecia. Aparentemente, após uma década de afastamento, a única ideia concebível nestas ocasiões é a da continuidade. Face à concorrência explicativa do álcool, qualquer revolução torna-se francamente implausível.

27.5.05

Fantasmas

Na entrada da Praia do Meco, uma família prepara-se para ir almoçar, depois de uma proveitosa manhã passada no areal. O pai, equipado de tanga preta e de barriga em riste, limpa carinhosamente a areia do corpo de um filho, réplica depilada do seu progenitor, enquanto lhe diz: "abre as perninhas, filho". A mim, que passo por eles nesse preciso momento, só me vem à cabeça uma coisa: maldito sejas, processo Casa Pia!

24.5.05

Impulso

Tentava escrever o post seguinte: "Hoje não consigo. Fica para amanhã.". Tentava escrevê-lo na esperança que as palavras fossem realmente como cerejas, mas comecei a derrapar no desinteresse destas visitas aos bastidores de um blog. O esqueleto da criação, neste universo de minudências, dificilmente pode ser visto a olho nu. No entanto, não me consegui impedir de tentar o micro-exibicionismo.

23.5.05

A besta

Se me deixassem provavelmente não teria amigos. Teria DVDs, livros, uma varanda com vista sobre Lisboa e vultos inúteis em momentos de sobriedade. Felizmente, há pessoas que insistem em falar comigo e que só raramente me insultam.

20.5.05

Pregos

Morrer com saúde é inútil. A partir de um certo ponto na vida é importante deixar de ser saudável nem que seja garantir a eficácia da morte, quando ela rondar. Há uma certa nobreza em saber mudar de assunto.

Dissociação

O projecto de preencher dois cadernos com segredos ficcionados, polvilhá-los de pequenas pistas, numerá-los "2" e "7" e abandoná-los pela cidade, seduzia-o. Gostava dessa ideia improvável de ter alguém à sua procura, mesmo que ele próprio não existisse.

18.5.05

Do not go gently into that good night


O amanhecer é simultaneamente o melhor da noite e o pior do dia.

"Boa sorting"

Na Praça da Figueira está instalado o circo da RTP, tendo a "Praça da Alegria" sido integrada numa coisa chamada "Hora do Leão", com o pateta do Jorge Gabriel a animar os reformados e donas de casa da nação, em tons de verde e branco. No Rossio, está o da Renascença. Na TSF descobriram um emigrante português, obviamente benfiquista, que veio da Califórnia para "ir ao Estádio da Luz ver o grande Benfica ganhar ao Sporting" e que agora vai até Alvalade ver a final da UEFA. Nos jornais a Carlsberg brinda-nos com slogans espirituosos, que tentam a cumplicidade e lembram a legendagem das falas do gendarme inglês do "Alô Alô". O Sporting passou a ser português e nós, sportinguistas, eclipsámo-nos na massa indistinta.

A ligeireza com que o resto do país se juntou à causa é francamente incomodativa. Pessoalmente, dispenso a solidariedade de circunstância. Já é suficientemente complicado lidar com a aura trágica num clube onde ninguém se esquece, em momento algum, da possibilidade real de derrota, seja contra que adversário for, sem termos de entrar em campo a lutar contra o décimo segundo jogador da outra equipa: o azar trazido pelo lampião anónimo que pensa torcer por nós. Assim como o Figo não pode ir à selecção nacional quando lhe dá jeito, dos outros clubes exige-se um permanente sectarismo, não uma qualquer tentativa de objectividade. Não há partilha, há competição. Para a glória, assim como para a calamidade, estamos cá nós.

17.5.05

Ogólna Teoria Wszystkiego

Traduzir "teoria unificadora" como "theory of everything" (ou vice-versa) é invulgarmente sintético.

16.5.05

Variações à volta da taxa de esforço

Enquanto vou empobrecendo vertiginosamente, lembro-me de experimentar pela primeira vez uma hidromassagem caseira, enfiado numa banheira demasiado pequena. Vitimizado pelo pato bravo que deu origem à escola de pensamento do "neo-luxo em T2" e que me obriga a alternar entre ter os joelhos ou o tronco fora de água, o meu pensamento vagueia da impossibilidade de evitar que as pessoas pensem que uma hidromassagem é apenas um sinónimo de masturbação no banho, às recordações de dias melhores vividos a boiar nas ondas, em destinos longínquos.

Apesar de acabrunhado pela redução ao absurdo que é o conceito de qualidade de vida na classe C1, em tempos de penúria, a tepidez tropical da digressão relembrou-me uma sábia frase que me foi transmitida há uns anos e que evitou, por diversas vezes, que fizesse algo de imbecil como poupar dinheiro para o poder gastar com sensatez: há uma vida mais barata do que esta, mas não é tão boa. Se a necessidade não inventar mais nada, ao menos que produza filosofias de pacotilha.

13.5.05

Educação musical

Envelhecer (também) é passar a preferir o original à remistura, é entregar-se inapelavelmente à revisitação do passado, usando como desculpa a procura de uma certa delicadeza que se perdeu ao fim de inúmeras (re)interpretações.

Mundo alternativo

O Professor Karamba, com os seus 42 anos de experiência desde que começou a oferecer os seus serviços, há anos atrás, e as "novas tecnologias", estão paradoxalmente presos num mundo onde aparentemente a existência de tempo requer confirmação. Fica tudo para amanhã, porque o amanhã nunca chega.

12.5.05

Calor

No Poço do Borratém, a chegar ao Martim Moniz, está, todas as manhãs, uma mulher a vender-se. Vai mudando de cabelo, algumas peças de roupa, mas a mini-saia e o corpo deprimido são sempre os mesmos. Encosta-se a uma parede onde o sol matinal, enxertado, a ilumina por entre dois prédios. O estrelato cálido desce pelo subitamente terno Beco dos Surradores e transforma aqueles metros de muro num refúgio tolerável, no meio da vivacidade acinzentada daquele bairro. Nos dias encobertos, em que o sol não corre pelo beco até ao seu posto, ela não aparece.

11.5.05

Puberdade

O pendor melancólico revela-se quando me apercebo que ando a ouvir no carro um disco editado em 1990 e que comprei nessa mesma altura e não quando já tinha idade para ter juízo. Há um sentimento de estranheza inerente à descoberta que passei mais de metade da minha vida com este disco, a repescá-lo periodicamente do esquecimento. No entanto, o que é verdadeiramente espantoso é descobrir que, algures entre os Snap, o Vanilla Ice e o MC Hammer, há uma parte do meu passado musical adolescente que não me envergonha.

Correntes

Parafraseando alguém, se o papel da "própria da" arte, na arte conceptual, acaba por se limitar a reduzir as possibilidades imaginativas do conceito a uma só, hoje, a dose de liberdade que sirvo é esta: pundonor.

10.5.05

Pseudo-dilema moral

Uma pessoa toma um banho de imersão durante uma seca:

a) Porque pode;
b) Porque é de direita;
c) Porque sendo de direita, pode;
d) Porque o problema é um falso problema, visto que o preço da água não se alterou apesar de estarmos a viver um período de seca;
e) Porque sabe que se tomasse um duche iria gastar ainda mais água;
f) Porque é uma besta.

Manobristas II

O patriotismo, na variante portuguesa do conceito, resume-se a uma alegria agregadora resultante de um processo evolutivo aberrante, de uma negação do darwinismo que nos leva a correr para o meio da estrada quando o sinal dos peões passa a vermelho, enquanto o resto do mundo prefere evitar o risco de ser atropelado por um autocarro.

6.5.05

Freud

Sempre que escrevo um post mais comprido, a expressão "lenha para me queimar" emerge inexplicavelmente das profundezas do meu subconsciente. Afinal de contas, se não podemos confiar nos outros, quanto mais em nós próprios. Mesmo no campo da ridicularia, a barreira entre a purificação e a auto-destruição é ténue.

Quo Vadis

Não gosto de um mundo em que o voice mail não é usado, em que ele foi trocado por uma críptica mensagem de chamada não atendida, à laia de sucedâneo. "Não deixo mensagem porque ele vai ver o meu número e depois liga-me". É deprimente assistir a mais uma das aplicações da lei do menor esforço, ver pessoas a invocar a eficiência como artigo único de um código de conduta.

Por muito que se abrevie alguém, não há equivalência prática entre uma mensagem de voz e um espasmo algorítmico desenvolvido pela Nokia. Não só não é possível reduzir a densidade ontológica do outro a um toque, como não faz sequer sentido tentar, sobretudo considerando que graças àquela espantosa tendência para asneirar porque podemos, nunca se sabe o que nos espera do outro lado da linha.

Pela minha parte, limito-me a não responder a quem não se dá ao trabalho de ser ouvido. Todo o cuidado é pouco quando confrontados com iniciativas não solicitadas de desconhecidos. As adivinhações deixo-as para o Luís de Matos.

5.5.05

Acessibilidade


Há dias em que sou assombrado por memórias de lugares acessíveis através de praias e de praias acessíveis através do mar. Há dias em que a inacessibilidade é a mais sensual das propostas.

4.5.05

Formação

Os animais de estimação toleram-nos porque não conseguem sobreviver sem nós, porque viciámos a ordem natural e os trancámos em espaços onde a comida não só não está viva, como vem dentro de pacotes e muitas vezes está congelada. Não se trata de uma questão de amizade, nem sequer de estima, mas sim de ortoprotesia.

Eles não nos acompanham, não nos amam, dependem de nós por razões práticas e nós deles porque nos treinam. Dão a sua vida para que possamos aprender domesticar a transcendência, mais especificamente, a morte e os filhos. Com a sua micro-existência relativizam a dor, esquematizam o desconhecimento do outro.

Já tive um cão, pelo que, ceteris paribus, estou razoavelmente preparado para lidar com pessoas com menos de três anos de idade. No entanto, ele ainda está vivo e próximo. Apesar de tudo, tenho esperança que ele ainda venha a cumprir a missão ingrata que lhe confiámos. Tenho esperança que a sua morte não seja inútil, já que a minha família só recentemente começou a morrer e os meus amigos ainda estão todos de boa saúde.

3.5.05

Aproximação

A proximidade da morte obriga-nos a elaborar algo mais as razões que nos levam a rejeitar Deus. Continuamos a ser movidos pelo egoísmo, mas passamos a reconhecer o vício.

Do cinismo revisitado

Durante um almoço numa esplanada do Chiado, com o Diogo Infante a poucas mesas de distância:

- Está ali a "primeira dama".
- Onde?
- Ali, o Diogo Infante. Enfim, a suposta "primeira dama", porque é óbvio que não é.
- Pois não. Agora que passaram as eleições já ninguém tem vergonha de o admitir.