15.11.04

Parem as rotativas!

Acabei de descobrir que esta chafarica fez um ano na passada sexta-feira. Nunca pensei que o entulho que pulula na minha cabeça desse para alimentar doze meses de blog: nada melhor do que acabar com o Classe Média numa ocasião como esta.

Nos últimos tempos tenho vindo a arrastar-me pela blogosfera. Não que a produção de lixo mental tenha parado, eu é que finalmente devo ter ficado com vergonha de deixar tão vil legado. O que é certo é que o blog perdeu o seu propósito e, pior do que isso, começou a exigir demais de mim.

Talvez num blog colectivo me continuasse a divertir, mas uma vez que decidi trabalhar por conta própria, não faço tensões de viver acossado pelas regras que eu mesmo criei. A minha identidade como blogger pode ser encontrada na coluna da direita. Se alguém me quiser contratar, estou disponível, ma non troppo.

De resto, como me faltam as palavras para rematar a despedida, convidei o Paul Éluard (que se tem vindo a revelar adequado para estas situações) para escrever uns versos sobre a experiência do blogger que desiste:

L'aube je t'aime j'ai toute la nuit dans les veines
Toute la nuit je t'ai regardée
J'ai tout à deviner je suis sûr des ténèbres
Elles me donnent le pouvoir
De t'envelopper
De t'agiter désir de vivre
Au sein de mon immobilité
Le pouvoir de te révéler
De te libérer de te perdre
Flamme invisible dans le jour.

Si tu t'en vas la porte s'ouvre sur le jour
Si tu t'en vas la porte s'ouvre sur moi-même.

Nota: Eu sei que deixar poesia em francês no blog é uma tentativa ridícula de parecer sofisticado, sobretudo porque para arriscar uma tradução, eu próprio teria que saber de que é que o Paul está a falar, mas as despedidas são sempre inglórias...


12.11.04

Sexta-feira

Tenho saudades dos tempos em que a noite de quinta-feira podia ser uma criança, dos tempos em que eu conseguia usá-la em toda a sua extensão sem me lembrar que o arrependimento me iria acolher de braços abertos quando, duas horas depois de chegar a casa, tivesse que abrir os olhos para tentar ingloriamente produzir. Reconheço que esta capacidade de antecipação me retira algum encanto, alguma "perigosidade". A racionalidade descontrolada enterra-me lentamente na banalidade. Deve ser a estas fases de transição que chamam "a puta da idade".

Lebensraum

O ideia subjacente à instalação de dois lavatórios na "suite" da casa parece ser a de que duas pessoas deveriam poder usar simultaneamente uma casa de banho para algo mais do que a prática sexual ou o consumo de drogas. Como é óbvio, isso é perfeitamente absurdo.

11.11.04

Sexismo do dia

Presumo que só depois de muitos anos de preocupações com "the finer things in life" (sendo que "finer" neste caso teria como significado "delicado") é possível às mulheres desenvolver uma sensibilidade tal que lhes permita distinguir o vermelho do encarnado, sem fazer considerações de carácter sociológico. No entanto, o que mais me espanta nesse super-poder é a sua flexibilidade. É verdadeiramente assombrosa a capacidade feminina de condensar estas insuperáveis aptidões cromáticas de forma a determinar, de um só trago, se uma peça de roupa é de cor ou não.

Stand up comedy

Olho para a capa do "Portnoy's Complaint" onde alguém do Guardian escreveu que este é "the most outrageously funny book about sex yet written". Assumo que sim, ainda li poucas páginas. No entanto algo no humor escrito me parece profundamente incompleto. Uma piada deveria ser dita em voz alta, sob pena de passar por demasiado cerebral, de não exaltar uma certa boçalidade submersa, de não induzir o riso. É certo que ainda só li trinta páginas, e que já pensei em sorrir umas quantas vezes, mas esta intermediação da razão apenas serve para transformar "outrageously funny book" num exasperante paradoxo.

9.11.04

Wilde

No sábado, depois de ter passado uma hora a tentar pateticamente estacionar o carro no raio de um quilómetro do Bairro Alto, lá consegui jantar. Um crítico de arte de renome celebrava o seu aniversário na mesa do lado. A certa altura, ficámos a sós com o grupo dele. Beberam champanhe em cima das cadeiras, dançaram Dean Martin e Frank Sinatra, riram muito, sempre com gargalhadas que se queriam incontidas. Lá pelo meio, uma russa petite, cujas ancas rolavam de uma forma exuberante graças aos seus joelhos sempre muito unidos, e a proverbial homossexualidade, compunham aquela panóplia iconográfica das artes nacionais que se banhava numa felicidade contagiante.

O silêncio apenas irrompeu, seguido de olhares curiosos, quando eu disse talvez alto demais, a frase "eu sou do SIS". Na minha mesa, ríamos do Serviço de Informações de Segurança, na do lado, aparentemente levavam-no a sério. Não consegui deixar de pensar em como esta papa a que chamamos democracia é difícil de digerir, em como aquela alegria, por muito copiosa que fosse, ainda era clandestina. Mais uma vez, tive pena de viver num país politraumatizado. Nem que seja porque limitou a inveja que senti daquele ajuntamento arrebatado.

8.11.04

A Vila

Os meus pais gostam de me contar histórias, relatos de uma Lisboa que se perdeu. Tropeçam regularmente numa não-sei-quantas que era das mulheres mais bonitas de Lisboa ou num não-sei-quantos que era o comandante mais bonito da TAP. Estes míticos não-sei-quantos induzem em mim uma pseudo-saudade dos tempos em que era possível meter no bolso a beleza de uma cidade. Hoje em dia, conheço uma ou duas raparigas de quem dizem o mesmo. No entanto, tanto eu como as pessoas que o dizem, sabemos perfeitamente que isso é mentira. A beleza moderna é tudo menos estanque, mesmo que a cidade às vezes pareça tão pequena como o era há trinta anos.

5.11.04

Afinal é possível gostar de um certo inverno...

O inverno dos pequenos fins, das interrupções inesperadas, das descobertas difíceis, do vermelho vivo dos interiores. O inverno em que o silêncio se instala, vagaroso, quando começa a chover. Tudo o resto é uma longa espera, um longo movimento melancólico.

4.11.04

Não gosto do inverno II

Porque amputa o nosso mundo e esconde o dos outros. Porque o exterior deixa de ser uma opção e passa a ser um mal necessário. Porque a chuva e o frio empurram-nos para os braços da Quinta das Celebridades. Porque na rua somos povoados por uma morte intermitente. Porque no turismo de interiores somos obrigados a proximidades forçadas, a aturar-nos a nós próprios. Só problemas...

Não gosto do inverno

Aliás, não gosto do nosso inverno. Porquê? Porque apesar de temperado, continua a ser um inverno e não uma tropical estação das chuvas. Porque, de certo modo, o inverno é um conceito classista, de país desenvolvido e eu não gosto de todos os anos ser relembrado que também pela via climática podemos considerar que vivemos num país de "fracos e oprimidos", com um pé no Norte e outro no Sul. Acabamos por ter o pior dos dois mundos: a comida não cresce espontaneamente do chão e os nossos impostos vão mas raramente voltam. O inverno é só mais um dedo na ferida.

3.11.04

Terra de ninguém

Quando iniciamos um blog pensamos que vamos finalmente poder escrever tudo o que sempre quisemos dizer. Passado algum tempo, olhamos para trás e vemos que acontece exactamente o oposto: só escrevemos o que não queremos dizer ou, pelo menos, o que não queremos dizer a um outro, palpável. Escrevemos para nós próprios ou para ninguém, deixando palavras ao abandono na rede numa aproximação discreta à literatura. Ultrapassamos lentamente o imediatismo da comunicação diária para chegar a um cocktail composto de eternidade e de vazio, em partes iguais.

2.11.04

Lá fora cá dentro

Os fins de semana seguidos de feriados levam-nos a raciocínios onde damos por nós a dizer insistentemente que domingo é sábado e que segunda é domingo, ou uma coisa nesta linha. Desordenamos cronologicamente a semana para justificar excessos. Ao abrigo destas cogitações enviesadas, vamos até ao Porto acompanhando uma migração em massa de compatriotas. Abusamos dos croissants prensados ao almoço, do álcool e, em última análise, da sorte. Tentamos descobrir o que de mais fino (no sentido afro-americano da palavra) a cidade tem para oferecer, mesmo sem saber o que isso quer dizer. Reencontramos umas centenas de patrícios no regresso a casa. Experimentamos o IC19 às portas de Leiria. Terça-feira, à beira da depressão, preparamo-nos para ver os Sopranos e apercebemo-nos que afinal terça não é segunda. O que sobra de três dias de arrebatamento dissipa-se abruptamente. O retorno da ordem é a machadada final.