30.8.04

Menos um (ou os dias que correm)

Hoje enterro mais uma parcela do tempo que me foi atribuído neste mundo. Menos um ano para saborear. Talvez por este dia coincidir com o fim dos Jogos Olímpicos e com a altura em que me apercebo que a consequência de ter tomado a decisão sempre questionável de passar férias fora de Lisboa em Agosto, é ser obrigado a estar cá em Setembro, vejo-me remetido a uma estúpida empatia com quem canta "foge comigo na última volta da maratona".

27.8.04

De regresso

Cansado, desembarco em Lisboa, no final de mais um daqueles percursos onde a lógica inatingível da indústria da aviação nos relembra como é difícil viver no cólon do mundo civilizado, apesar de os estrangeiros nos repetirem insistentemente que é fácil ser feliz por estas bandas. Abateu-se sobre mim o peso das horas perdidas em "túmulos de serenidade", enquanto cruzava os céus do Médio Oriente e da Europa Central a digerir tempos que escapam a uma bovina dança sincronizada para a qual fui recrutado impiedosamente, vítima de perigosas zonas de turbulência. A mediania prossegue com o retorno à utilidade rotineira.

10.8.04

De partida

Vou-me embora. Deixo esta Lisboa pouco sufocante e parto para uma terra que se orgulha de ter inventado o conceito de "bombista suicida". No novelo dos preparativos, ficaram algumas respostas por escrever, links por concretizar e agradecimentos em dívida. Enfim, uma vida adiada. Até regressar à base, vou fazer os possíveis para não passar por aqui. Afinal de contas, se a actividade blogosférica em Agosto é sobretudo masturbatória, aos poucos torna-se evidente que, apesar de agradável, tem os seus limites. Impõe-se a procura de novos fantasmas.

6.8.04

Revista de imprensa

O Independente tem uma secção ("O Rei do Dia") que consiste numa entrevista com o objectivo único de ridicularizar, com uma certa dose de cortesia, figuras que se levam demasiado a sério. Sabendo de antemão que o entrevistador tem a missão de lhes servir perguntas minadas, os entrevistados, pressionados, esforçam-se atabalhoadamente por praticar um humor ligeiro e auto-depreciativo.

No passado, esta fórmula já produziu alguma pérolas, no entanto, na edição de hoje, o Rui Reininho teve a habilidade para não só se esquivar, com maior ou menor desembaraço, das hipotéticas armadilhas que lhe prepararam, como ainda conseguiu dar à luz uma réplica de fino humor, cuja sequência passo a destacar:

O que é que o atrai numa mulher?
A capacidade que elas têm de simular orgasmos. Eu não consigo por muito que tente. [Nesta pergunta, o Rui, inteligentemente, deu uma resposta sem piada nenhuma.]

E num homem?
O drible curto. [Cá está, a preciosidade em tons silly season.]

Com isto, já posso sair de casa com outra confiança.

5.8.04

Exigência

A pastelaria Versailles, nas suas funções museológicas, exige dos seus clientes a obediência a determinadas regras de modo a potenciar a exultação de um simples lanche. Devemos ser respeitosos, civilizados, contidos e sobretudo dignos. Dignos de uma forma vitoriana, anterior às reproduções assépticas, massificadas e viciantes do mundo natural. No fundo, lá dentro, mergulhamos num mundo anterior à Coca-Cola, onde para além de encontrarmos um dos últimos repositórios de avós de cabelo arroxeado, as torradas vêm acompanhadas de uma fachada de moralidade para consumo instantâneo.

4.8.04

Pequena nota sobre o umbiguismo

«When it comes to entering a man or woman's mind, a writer has to be good, even brilliant. [...] It is one of the techniques a novelist acquires instinctively: don't go into your protagonist's thoughts until you have something to say that is more interesting than the reader's supposition. To jump in only to offer banal material is a fatal error. It is the worst kind of best-sellerdom. Second-rate readers enjoying the insights of second-rate writers.»

[Norman Mailer, The Spooky Art: Some Thoughts on Writing, p. 95]

3.8.04

Ansiedade

Tento sair desta cidade. Tento desesperadamente fazê-lo. Há quem defenda que Agosto é a melhor altura do ano para se ficar por cá. Eu, por mim, não gosto de ter que optar entre fazer turismo em casa, ou ser arregimentado neste postal esvaziado. Esforço-me por cumprir as últimas formalidades antes de abandonar este lugar do qual apenas conheço a geometria e pouco mais. Faço por ir alegremente atrás da canalha, por deixar as ruas com a sua infidelidade. Até lá, vou suando uma doença que certamente me irá amaldiçoar até à hora da partida.

2.8.04

Abandono

Ontem à tarde recusei o Agosto. Recusei a praia, o sol calcinante e a volubilidade da melanina. Recusei a vida em deslocação, a melancolia radiofónica de fim de tarde, as ingerências impostas pelos meus semelhantes em trajes menores de cores vivas, untados com Piz Buin. Em vez de me obrigar a lidar um mar demasiado frio para esta altura do ano, mergulhei no detalhe, no fervilhar pormenorizado da existência, limitado a um raio de 100 metros de minha casa. Ignorei a presença demasiado palpável dos minutos que passavam. Não falei.

À noite, quando finalmente abandonei a minha embalagem para me ir alimentar à beira-mar, lembrei-me do regresso às aulas, no liceu, do receio que tinha de já não saber escrever ao fim de três meses de sobrecarga sensorial. À medida que me aproximava do ponto de convergência entre o meu domingo autista e a normalidade alheia, tive medo de já não saber as regras, de já não conseguir voltar à minha banalidade regular. É claro que a hipótese de um robalo ao sal, e um empregado de mesa que se recusa a ler ecos interiores, podem facilmente arquitectar o milagre da descida das alturas.