29.10.04

Vidas simples

A escola de pensamento que defende que a simplicidade é sinónima de beleza (ou vice-versa) tresanda a paternalismo. Mesmo num mundo onde ainda é possível encontrar duas pessoas que, passeando no Chiado, conseguem arranjar algo para dizer sobre o "ambiente fashion" do Lux, tento fugir deste tipo de colagens. Não consigo evitar relativizações. Não consigo deixar de pensar que nada é simples ou mesmo que tudo pode ser belo.

28.10.04

Eu sei que tu sabes que eu sei mas não consigo dizer

É impressionante como, numa qualquer relação afectiva, sempre que fazemos declarações bombásticas e transbordantes de auto-confiança, estamos a pedir encarecidamente ao outro para não pagar para ver. A acreditar naquela teoria em que a maturidade consiste simplesmente em dizer a coisa certa, no momento certo, à pessoa certa, verifica-se que esta é frequentemente relegada para um nível subliminar, que uma fragilidade mal dissimulada faz mais para aproximar duas pessoas do que uma virtude intrinsecamente admirável. Entre a universalidade anónima de uma qualidade e a intencionalidade personalizada de um defeito, a intimidade surgirá sempre pela segunda via.

27.10.04

Professor Pardal

Ontem, enquanto tomava banho, dei por mim a pensar em espécies em vias de extinção. Lembrei-me que já há uns anos que não via alguém usar camisas abertas com t-shirts por baixo (sem t-shirt ainda se vão vendo) e que os sapatos que comem meias tinham desaparecido misteriosamente de circulação. Afinal enganei-me. Um par que comprei recentemente é a última encarnação dessa praga que julgava extinta desde a minha adolescência.

Motivado por uma putativa maturidade que se terá desenvolvido em mim nos anos que se passaram desde o meu último encontro com um destes espécimenes, encetei uma derradeira tentativa para perceber o mecanismo por trás desta deglutição e, quiçá, evitá-la. Testei algumas hipóteses para saber se devia apertar muito ou pouco os atacadores, perdi-me nos meandros das implicações dos diferentes materiais das meias, do seu estilo (cano curto vs. cano longo) e cheguei mesmo a analisar diferentes posições do pé enquanto andava. Não consegui chegar a uma conclusão satisfatória.

Acho que vou mesmo ter que recorrer a estes dois patuscos. Já está na altura de deixarem de perder tempo a fazer desaparecer pirexes usando óleo vegetal e começarem a preocupar-se com questões verdadeiramente fulcrais.

26.10.04

Ainda a perseverança

Como qualquer especialista em medicina tropical pode confirmar, esforços continuados (contra o avanço de uma doença) em ambientes inóspitos, na maior parte das vezes apenas nos levam até precipícios desconhecidos. Como dizia o outro, ter tracção às quatro rodas significa ficar atolado em sítios verdadeiramente inacessíveis. Numa vertente mais lírica, provavelmente desembocamos na apologia da ignorância como chave para a felicidade, quando não conseguimos digerir a crueldade do conhecimento. É claro que há quem aprenda a gostar da permissividade de uma queda desamparada. Pessoalmente, ainda não tive um momento de revelação.

25.10.04

Da blogosfera

"Chamam a isto o prazer, mas é o coração de se derrete, que se parte, como lágrimas. É o coração que se derrama até ao infinito, para sempre."

Pierre Drieu la Rochelle in Gilles, 1939

Por entre mortos e feridos, vamos ficando para trás. Não consigo perceber se a perseverança é motivo de orgulho ou apenas patética.

22.10.04

O que me interessa dizer sobre o estado a que isto chegou

Ao almoço, dizem-me que uma amiga minha foi para os Estados Unidos. A minha primeira reacção foi assumir que ela tinha ido para lá viver. Afinal foi só passar duas semanas de férias. Não sei bem como é que esta evolução se processou, mas aparentemente nem me passa pela cabeça que alguém que vá a um país num raio de € 500 de avião de Portugal, não se mude para lá.

Quando tentei dissecar este automatismo cheguei à conclusão que me vejo remetido a uma lógica pavloviana por viver num país de tipos medíocres, idealistas ou filhos da puta (leia-se cínicos). Todos os outros emigraram, por iniciativa própria ou pela via do executivismo. Alguns dos que ficaram, conseguiram combinar pelo menos duas destas três qualidades e mandam neste lote de terreno onde o verão dura seis meses.

Acho que ao escrever este post acabei de me tornar um filho da puta medíocre. Talvez haja esperança.

21.10.04

"You don't meet nice girls in coffee shops"

Nas canções do Tom Waits é regurgitada a América sonhada. A América do cinema, do americano (língua), do alpendre, do horizonte longínquo. Um cenário ideal para tragédias íntimas, feridas abertas e venenos adocicados. Nos dias que correm, um cenário ideal, ponto.

Interrogação matinal

Eu sei que vivemos em tempos incertos mas, "meu deus", porquê um Volvo azul escuro?

20.10.04

Antes do anoitecer

Num filme que de cinema tem pouco, vemo-nos obrigados a lidar com uma paixão que passa por real, despojada mas familiar. Desse ponto de vista, é fácil fazer o que queremos do filme, é fácil apropriarmo-nos dos diálogos, das hesitações, do brilho. Também é fácil tropeçar em incompatibilidades entre as duas personagens e nós próprios, esquartejá-las como fazemos com as outras "pessoas". No meu caso, não gosto da Céline. Diria mesmo que não a suporto.

Não gosto do facto de ela se descrever paradoxalmente como uma "strong, independent woman", num travelling sobre a inevitabilidade da dependência. Não gosto da sua maturidade forçada, da sua sinceridade desabrida. É uma mística que não é a minha. É um exercício que sou incapaz de fazer. Especialmente quando em gritante contraste com a desilusão discreta, a fragilidade contida de um Jesse sazonado.

De qualquer forma, o filme serviu o seu propósito: não me trouxe a salvação, nem uma fé renovada, mas sim memórias de uma vida mais simples, polvilhada de sentimentalismos aparentemente complexos. Dez anos depois, volta a confirmar-se que todos os amores são ridículos e que os dos outros são sempre mais ridículos do que os nossos. Ou vice-versa. Dez anos depois, a simplicidade deste abismo voltou a aproximar-me de quem já na altura tinha a mesma embirração com a Julie Delpy que eu.

19.10.04

Na sombra

Ninguém me convence que a capacidade de ter "ideias" sobre a morte, o ambiente, ou qualquer outro tema fracturante e/ou actual, seja a chave para a sedução. Assim como, mesmo não querendo duvidar da proficiência das pessoas que limpam instalações sanitárias, ninguém me convence que a zona atrás das sanitas não é mais suja (ou menos limpa) do que todos os outros recantos das casas de banho.

Civismo popcorn

Sempre que me vejo obrigado à proximidade não requisitada com os meus semelhantes, acabo imerso num qualquer dilema moral. No cinema é um clássico. Já para não falar nos sons, cheiros e tiques do cidadão anónimo, a restrição de liberdades individuais tem-se tornado uma figura cada vez mais presente. A última de que fui vítima, foi exercida por um casal de espectadores que no final do "Antes do anoitecer" queria ficar em meditação.

Até aqui tudo bem, já que o filme até se prestava a isso. O problema surgiu apenas porque o arroubado casal mergulhou num fervor sonhador, sentado na coxia, deixando meia fila entalada entre um caminho mais longo e entupido com pessoas em dilemas semelhantes e a revolta contra uma ditadura momentânea mas extremamente eficaz. Eu, como figura de proa desse grupo agrilhoado (estava sentado ao lado dos pombos), resolvi levantar-me para os acordar, depois de lhes ter dispensado cerca de um minuto de contemplação. O casal olha para mim e lança-me umas trombas. Enfim, face a isto, não tive outro remédio senão atropelar quatro pernas que me ofereciam, com relutância, uma passagem com dez centímetros de largura. Por um país melhor.

15.10.04

Elegias

Agora que sofri o meu primeiro ameaço de constipação, começo finalmente a ficar convencido que o verão acabou. Felizmente, esta rapariga vai-me cantando elegias enquanto guio através do outono:

The saddest part of a broken heart
Isn't the ending so much as the start
The tragedy starts from the very first spark
Losing your mind for the sake of your heart

Feist - Let it Die

Distinções

Ao contrário dos apartamentos, as pessoas que se candidatam a seduções nem sempre se querem "confortáveis, bom design".

Desabafo

Já não posso ouvir pessoas a discutirem quem "ganhou o debate", qualquer debate. Nos dias que correm, considero tão insuportáveis os pseudo-analistas que nos tentam traduzir actuações e vender vitórias subtis, como os próprios intervenientes dos ditos debates. Quase tão insuportáveis como o tipo que trabalha ao meu lado, que acabou de deixar cair um lápis ao chão e arranjou maneira de ter uma conversa de trinta segundos com ele (o lápis) que se iniciou da seguinte forma: "Uh! Estás vivo? Estás vivo, pá?".

14.10.04

Pequenos snobismos

Nos dias que correm, onde emancipações avulsas colidem diariamente connosco, é com um sorriso discreto (não vá o diabo tecê-las) que descubro que afinal ainda há raparigas, que mesmo não tendo idade para serem minhas mães, têm sensibilidade suficiente para conseguir ver que um homem de fato pode estar algo mais do que "fardado". É claro que direccionar essa delicada sensibilidade a um neo-socialista, que cruza o pior do estilo "su misura" do Zegna (que patrocina o charmoso Adrien) com o mais funesto do estilo "gravata-de-seda-calça-a-afunilar-sapato-quase-italiano" da Boss, é um triste desperdício. A vida é, em muitos sentidos, injusta.

O passado revisitado

O medo do ridículo gera a necessidade de orgulhosas declarações públicas de não-arrependimento.

13.10.04

Como cerejas (ou talvez não)

Não tenho futuro como criminoso: raramente sobrevivo a um interrogatório. Sou lento, aflitivamente lento. Como se isso não bastasse, nunca vi um filme do Kusturica. Não tenho uma embirração com o homem e sei da sua existência, apenas nunca me apeteceu fazê-lo. Não sei se isso teria alguma influência na minha vida como delinquente, mas são estas as incógnitas dissimuladas em posts mal estruturados.

12.10.04

Queridos amigos

Uma das vantagens de viver no anonimato é a de sermos dispensados da necessidade de tratar os amigos por "queridos amigos" ou "caros amigos". Para além de evitarmos a redundância do "querido" ou do "caro", podemos também evitar dizer que o nosso "querido amigo" é o Miguel, para depois sermos forçados a escrever "Esteves Cardoso" entre parêntesis, não fossem as pessoas pensar que estávamos a falar do porteiro do Lux, o que, mesmo tendo em conta o glamour da referida discoteca, seria algo chunga.

Fora do circunscrito mundo do estrelato luso, a colagem a determinadas pessoas que até podem ser nossas amigas, não nos adianta nada. Torna-se totalmente desnecessária a ridicularia de tentar enfiar vultos maiores da cultura portuguesa contemporânea (?) no bolso para depois os podermos semear com sensatez. Quando caminhamos pela sombra, basta sê-lo, não é preciso parecê-lo. Tristemente, verifica-se que há muito poucas pessoas verdadeiramente anónimas.

11.10.04

City sickness

Lembro-me de, no limiar da puberdade, estar pendurado nas grades de uma janela com um miúdo algarvio que mal conhecia mas que, talvez por termos a mesma idade e ele viver numa casa ali próximo, estava ao meu lado a ver a irmã mais velha de um amigo de verão a vestir-se (ou a despir-se). Lembro-me de termos sido descobertos no nosso posto avançado e de termos fugido com o corpo dela. Lembro-me do tal miúdo ter dito enquanto corríamos extasiados que gostaria de lhe "lamber a cona" e dessa declaração ser a maior alarvidade que alguma vez tinha ouvido.

Nunca cheguei a perceber como é que numa altura em que eu me conseguia lembrar de todas as (raras) ocasiões em que tinha estado suficientemente perto de uma rapariga para que me fosse permitida uma tangente aromática a um mundo impossível, aquele puto já tinha mergulhado de corpo e alma numa ficção científica que ia bem mais além do universo do Buck Rogers, que eu frequentava.

É certo que durante algum tempo fiquei intrigado com esse seu desejo e com as suas ramificações, mas a distância entre a mulher que eu vi e a "cona" que ele viu, perdura na minha memória com um dos exemplos mais marcantes da tal "rudeza campestre". Não que na cidade que eu e os meus amigos povoávamos não existissem "conas", apenas ainda não existiam "homens com ó grande". Ninguém conseguia basear convicções em fantasias de pendor patológico: a nossa tese da altura ainda era a do amor. Só mais tarde dividimos as nossas fidelidades.

8.10.04

Fait divers

Nos últimos dias fixei dois factos importantes sobre crude: o do Mar do Norte é o que nos (portugueses) serve de referência, e os preços de Outubro dizem respeito à produção a ser entregue em Novembro. Tendo delineado uma opinião sobre o episódio Marcelo e uns minutos da actuação do José Castelo Branco arquivados no meu cérebro, estou pronto para qualquer mesa de casamento.

Despertares

Hoje de manhã, ao sair do meu prédio, deparei-me com uma tempestade de pó. Acelerei o passo até ao meu carro e tranquei-me lá dentro com convicção. Olhei para o céu. Já não me lembrava da última vez que o tinha visto enevoado e longínquo. Ligo o carro e ecoa a Suécia do Neil Hannon. Depois de seis meses de entorpecimento veraneante, não é preciso um grande reacendimento climatérico para nos convencer da proximidade das pragas do Egipto.

Contra-golpe III

"When I saw Pete in the terminal, his face registered to me as blank and impossible to process as the first time I'd met him. [...] Everything was for the touching. Everything was buildings and bushes, parking meters and screen doors and sofas. Gone was the computer; the erotic darkness of the telephone; the clean, single dimension of Pete's voice at 1 A.M.[...] These moments were crowded with elements, with carpet fibers and direct light and the smells of everything that had a smell. They left marks as they passed. It was all wrong. Gravity was all there was."

Meghan Daum - On the fringes of the physical world, My Misspent Youth, 2001.

7.10.04

Cheers

Gostava de reencontrar um restaurante onde os empregados não se considerassem clientes sem sítio para se sentarem (injustiçados, portanto). Nesta altura do campeonato, já não me chega entrar num bar onde conheçam o meu nome, impõe-se que conheçam também o meu apelido. Dizem-me que ainda há sítios assim. Deviam ser reconquistados ao mofo. Resgatem-se de uma vez por todas os cocktails.

Contra golpe II

"The epistolary quality of our relationship put our communication closer to the eighteenth century than the uncertain millennium. [...] Our interaction was refreshingly orderly, noble in its vigor, dignified despite its shamelessness. It was far removed from the randomness of real-life relationships. We had an intimacy that seemed custom made for our strange, lonely times."

Meghan Daum - On the fringes of the physical world, My Misspent Youth, 2001.

Silêncios

Nas ruas da cidade, o verdadeiro silêncio só existe no verão. Durante o inverno, o frio grita-nos permanentemente aos ouvidos. Mergulha-nos no ruído da vida fragmentada.

6.10.04

Contra-golpe

"I was a true believer in the urban dream - in years of struggle succumbing to brilliant success, in getting a break, in making it. Like most of my friends, I was selfish by design. To want was more virtuous than to need. I wanted someone to love me but I certainly didn't need it. I didn't want to be alone, but as long as I was, I had no choice but to wear my solitude as though it were haute couture. The worst sin imaginable was not cruelty or bitchiness or even professional failure but vulnerability. To admit to loneliness was to slap the face of progress. It was to betray the times in which we lived."

Meghan Daum - On the fringes of the physical world, My Misspent Youth, 2001.

É possível que haja algo mais para além de sexo. A normalidade vai-nos controlando o pragmatismo.

Darwinismos falhados

Facto nº 1: o número de mitras numa qualquer praia é proporcional ao número de mulheres de fio dental nessa mesma praia. Facto nº 2: o número de mulheres de fio dental numa qualquer praia é inversamente proporcional ao número de mitras nessa mesma praia. Facto nº 3: Só as mulheres que vivem em concubinato com os líderes dos grupelhos de mitras é que estão imunes a esta lógica e usam fio dental independentemente do número de súbditos dos seus companheiros que se encontrem num raio de trinta metros do seu semi-exposto rabo.

O que me espanta em tudo isto é o facto do mitra, sendo membro de uma sub-espécie urbana particularmente moldada à imagem das suas pulsões, não se aperceber da relação entre o facto nº1 e facto nº2. Afinal de contas, não estamos a falar de uma observação que exija grande sofisticação intelectual, mas sim do mais primordial instinto de sobrevivência. Não consigo perceber estas inconsequências sociológicas.

1.10.04

Neo-mulherio

Há uns anos, propus, talvez desiludido com a Humanidade que conhecia na altura (primeiros momentos do pós-secundário), que entre o meu grupo de amigos o álcool e a velocidade a que se guiava deixasse de ser tema de conversa. Ontem, a propósito da vertente pública da gravidez desta senhora, cheguei a um comentário tão "medievo, sexista, digno de pena, e embaraçoso" como eventualmente será o post que lhe deu origem.

Isto relembrou-me a necessidade de abater mais alguns temas: as "mulheres modernas" deviam definitivamente deixar de se vender como um ser complexo e insondável, assim como alguns homens (que, como é de bom tom, nunca serão "modernos") deviam deixar de circular à volta do medo da (vagina da) Madonna. Impõe-se uma viragem ao centro generalizada ou, em alternativa, o amanho de um sentido de humor digno desse nome: indiferente à "ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social" da piada em questão. Nem que seja porque é uma chatice falar para o pinhal.

Estátua grega

Nascer bonito pode revelar-se uma tragédia. Depois da sublimação da infância, o caminho até à credibilidade é longo e árduo.