30.6.04

O imediatismo laranja

Haveria várias coisas importantes a dizer sobre a bagunçada política que o Zé Manel Barroso deixou para trás, mas já que há sempre alguém para o fazer com mais brilhantismo que eu, vou guardar eventuais reflexões para depois do futebol. Reflexões que só acontecerão se, por algum azar, daqui a umas horas me sentir na obrigação de me preocupar com qualquer outra coisa para além da localização da minha abrutalhada imperial, abrutalhada em clara homenagem ao Ricardo do Montijo.

Para já, é importante sangrar um pouco, intentar a glória popularucha do AVC pela selecção nacional, para procurar evitar que a crise em tons de laranja se alastre. A cúpula política que se agite, os comentadores que pisquem os olhos uns aos outros, o povo que se esteja nas tintas. Neste momento, para usar outra bela expressão de futebolês, só quero ver a selecção a "pôr a carne toda no assador" e, se isso não bastar, a ganhar de qualquer maneira.

29.6.04

Relações de vizinhança

Ocasionalmente, cruzo-me com vizinhos enquanto percorro a rampa de acesso à garagem do meu prédio. Há um ritual que se repete nestes encontros: para além do momento de pausa em que negociamos silenciosamente quem é que vai ter que manobrar para o outro passar, deparo-me sempre com um olhar curioso, mas incrédulo, que vem de dentro do outro carro.

Não sei como interpretar este esgar de espanto. Não sendo um tipo aflitivamente asqueroso, nem um Paul Newman, e não guiando um Delorean, vejo-me forçado a descartar as explicações mais óbvias.

Talvez pensem que o aglomerado urbano que é o meu prédio não passa de um logro metafísico, de uma materialização dos caprichos do génio maligno cartesiano. Que as rampas, os corredores, as luzes de halogéneo e as despesas de condomínio saíram directamente de uma miragem demasiado real. Talvez não concebam que a existência de outros seres vivos por entre estas lajes de betão seja mais do que um rumor, e que os vestígios em que tropeçam não se resumam a reminiscências de uma sessão de action painting divina.

Ao vê-los a eles, com a sua mirada atónita, e a mim a escrever estas coisas, apercebo-me que deve ser por isto que dizem que a vida citadina é alienante.

28.6.04

Prioridades

Eu gostava de falar de outras coisas para além da actualidade política nacional, mas infelizmente o futebol só volta na quarta-feira.

Crise?

Diz-se por aí que o PSD deve fazer o que é melhor para Portugal. Para mim não é evidente que o Santana não seja o melhor para Portugal, especialmente se ele se tornar Primeiro Ministro para levar a cabo o programa eleitoral do Durão. Aliás, só nessas condições seria aceitável que o Zé Manel fugisse para a Europa.

Não gosto de unanimidades, especialmente unanimidades em que, para além do homem gostar de festas e de mulheres, não é evidente quais são os outros "defeitos" que levem os que se insurgem contra a remodelação a afirmar de forma terminante que é "óbvio" que o senhor não presta para o cargo. Ah! É verdade. Tinha-me esquecido que ele também é "um demagogo e um populista"...

Pessoalmente parece-me que o Santana se pode tornar numa espécie de Scolari do governo: não sendo um prodígio da técnica, pode ser um bom líder, em todo o caso, melhor líder que o Durão, e sem dúvida melhor do que o Ferro, e isso parece-me que é o essencial, desde que se rodeie dos famigerados "tipos competentes", o que não tem abundado no governo actual. Como sempre, prefiro espera para ver. No pior dos casos, daqui a dois anos, o homem voltaria democraticamente à base, depois de julgado nas urnas pelos quatro anos de governo PSD/CDS.

No entanto, o problema não reside aqui. Já que aparentemente a questão das eleições antecipadas está nas mãos do PSD, não percebo como é que estes rapazes não se organizam antes que seja tarde demais. O Durão deixou-os sem alternativas. Não há espaço para os habituais barões tentarem a subida ao poder, sem provocar a inevitável instabilidade que os vais meter na oposição, sem passar pela casa da partida. Neste cenário, só há espaço para o Santana. Do ponto de vista do PSD, ou se é pragmático ou suicida. Não há meios-termos. Só lhes resta engolir o sapo e a nós (que acreditamos, apesar de tudo, que o caminho escolhido pela coligação é o caminho certo), até ver, também.

Do ponto de vista de um tipo perfeitamente mediano (eu), as coisas são fáceis de resolver. A metafísica política não paga contas no fim do mês.

Contudo...

Mesmo considerando o que disse no post abaixo, parece-me óbvio que, apesar de isso não garantir a manutenção do seu partido no poder, o Durão devia ficar por cá, levar a cabo o seu programa eleitoral e enfrentar as eleições, sem luvas. Mesmo porque, esta nomeação para Presidente da Comissão Europeia nem sequer nos livra do homem, antes pelo contrário: perpetua-o no poder. Apenas a escala se altera.

Chamem-me cínico, mas...

Parece-me evidente que a "oposição" só reclama eleições antecipadas porque seria um caminho quase certo para uma vitória eleitoral. A legitimidade e as restantes palavras de ordem dos últimos dias não passam de uma fachada para quem farejou a hipótese de voltar ao poder sem ter que esperar quatro anos, e sobretudo sem ter feito nada para o merecer, além de exigir sangue, com mais ou menos razões para isso, sempre que podia.

Limitam-se a invocar imperativos morais porque isso lhes serve, porque sabem que, tendo ganho as recentes eleições europeias e começando a existir alguns sinais de retoma da economia, podem não voltar a ter uma oportunidade igual nos próximos dois anos ou até, quem sabe, nos próximos seis, de se instalar em S. Bento.

Por muito atabalhoada, palaciana e criticável que esta remodelação governamental seja, pode salvar a coligação nas próximas legislativas, e esta ferocidade da esquerda nacional parece-me prova disso mesmo.

25.6.04

Magia

Há umas semanas, o Vasco Pulido Valente dizia que o Durão se tinha metido num labirinto sem saída. Entre outras coisas, VPV afirmava que remodelar uma parte dos ministros era insuficiente para o salvar nas eleições e despachar a totalidade do governo, como se impunha, era passar um atestado de incompetência à sua actuação até à data. Hoje, o Durão calou o VPV ao sair airosamente do tal labirinto: remodelou-se a ele próprio. Só tenho um pedido a fazer: leva-nos contigo Zé Manel!

Relativismo

Portugal jogou mal. Os ingleses jogaram pessimamente. A selecção deixou de vencer à Porto, para vencer à Sporting. Nesta versão, todos os embates ganham imediatamente uma dimensão épica. Jogamos por nós e pelos adversários, num exercício da mais pura grandeza de alma, em noites pródigas em heroísmos e sofrimento. Durante anos é provável que vá assistir emocionado ao grandioso desfecho do jogo, em que o penalti do Ricardo irá sempre surgir como um tratado sobre como desenterrar mortos-vivos e levá-los ao Olimpo (pelo menos até à meia-final).

Nestes dias vivemos num Portugal alegórico, em que apesar das nossas imperfeições ombreamos com algo de sublime. No entanto, todos sabemos que se algum dia esta versão do país se viesse a concretizar, acabaria conosco. Passaríamos a ser finlandeses e é sabido que essa malta não se dá bem com o calor.

24.6.04

Estágio

Já que o Scolari me convocou, vou juntar-me aos outros lisboetas que resolveram viver os seus momentos de calmaria privada, pré-tempestade, no torpor do trânsito. Vou concentrar-me exclusivamente em controlar a angústia e esperar que os "nossos rapazes" mandem a canalha inglesa para o pub seboso de onde saíram.

Portugal tropical

Talvez como consequência do opressivo clima sub-tropical que tem castigado Lisboa nos últimos tempos, o açúcar das caipirinhas parece que arranja maneira de nos vir parar à pele, através da transpiração. Nestes dias banhados por uma cálida humidade e de intensa vida táctil, é importante evitar o contacto directo com corpos nas mesmas condições. A junção pode ser irremediável.

23.6.04

Pequenos ódios

Não suporto pessoas que impõem os seus direitos. Desde o tipo que se atira para a passadeira, na ilusão que os carros conseguem sempre parar a tempo e que não vai andar a apanhar bocados dele próprio da estrada se isso não acontecer, até ao taxista que faz a Rotunda do Marquês de Pombal pela faixa de fora, protegidinho pelo código da estrada em caso de acidente, o que lhe permite não pagar um tostão dos arranjos e dos eventuais tratamentos médicos que possa infligir em quem tenta sair da rotunda.

Não tenho grande coisa a dizer quanto aos direitos em si, mas a sua efectivação nas mãos de gente mesquinha não podia prestar-se mais a um tiro pela culatra, em jeito de sacrifício por uma sociedade melhor, mais colaborativa. Não sou dado a actos de heroísmo absurdo, mas isto não é nada que uma travagem mais teatral, ou um ameaço de confronto com um taxista (dono de Portugal por definição) que se apresenta desgovernado pela esquerda, não resolva. Basta relembrar o carácter finito da nossa vidinha, debilitada por uma arrogância desprotegida face à lei e à física, para fazer desmoronar princípios.

22.6.04

Lady Francis

Talvez por causa desta humidade que prende os movimentos, vinha a caminho do escritório a pensar que gostava de rever o "Round Midnight", mais precisamente, de voltar a ouvir a doçura desiludida, a melancolia trôpega das palavras do Dale Turner, na voz do Dexter Gordon: "You know, Lady Francis, there's not enough kindness in the world". Como diria o outro, está lento lá fora.

21.6.04

Yesterday's news

A selecção finalmente deixou de jogar à Sporting para começar a ganhar à Porto.

Paradoxo

A massificação do telemóvel teve algumas consequências sui generis. Ao permitir-nos carregar conosco uma rede de intimidades que, no passado, ficavam enclausuradas entre quatro paredes, obrigou-nos a adaptarmos o nosso comportamento de modo a tentarmos manter invioladas essas mesmas intimidades.

Comunicar em movimento transforma-nos em vítimas da aleatoriedade dos impulsos do mundo. Todos os telefonemas arriscam-se a ser incómodos. Todas as conversas podem exigir secretismo. Desde que temos a possibilidade de estar permanentemente em linha com o mundo (o nosso e o dos outros), o que me espanta não é a inesgotável capacidade de comunicar mas sim a forma como ainda o conseguimos fazer, apesar dos outros.

18.6.04

Traumatismo

No estrangeiro, é frequente termos a sensação que os habitantes locais estão permanentemente a gozar conosco. É natural. Afinal de contas, é o que nós fazemos quando somos visitados e vemos a inépcia do turista médio ao tentar digerir a nossa nobre essência em 3 dias/5 noites. Tentamos diluir-nos numa outra nacionalidade, mas somos sempre traídos pelo detalhe.

Para os habitantes de países de língua inglesa, essa sensação é exponenciada por um factor simples: o mundo inteiro percebe o que eles dizem, mas eles, não percebendo qualquer outro idioma, não podem retribuir a cortesia. No fundo, estarão sempre dependentes de terceiros para perceberem a piada.

Talvez esta seja uma das causas do "imperialismo" americano (leia-se da vontade incontornável de provar ao mundo que não têm nada a provar ao mundo). Se, cada vez que pusesse os pés além-fronteiras, tivesse que viver com um dedo desdenhoso apontado na minha direcção, acompanhado de um risinho alvar e não me pudesse refugiar na incapacidade de comunicar para uma organizar erupção verbal desmedida contra os meus opressores, provavelmente também iria invadir um país que estivesse à mão de semear e tentar bater em toda a gente.

17.6.04

Entendimento

Com a inevitável futebolização de Portugal, tem sido (mais) frequente ouvir senhoras dizer diplomaticamente que não percebem nada de futebol, quando podiam afirmar simplesmente que odeiam futebol e tudo o que o rodeia.

Esta subtil escolha de palavras podia ser alvo de diversas interpretações que vão desde a homenagem à complexidade escondida do desporto e à poética "da bola", até à clássica discriminação positiva relativamente a homens civilizados e sensíveis por oposição a testosterónicos indivíduos que escarram e coçam um testículo com o anelar.

No entanto, nos últimos dias tem-se tornado evidente o porquê deste fraseado: com a quantidade de ingleses que por cá andam, é melhor tentar evitar qualquer tipo de atitude provocatória, sob pena de vermos uma cadeira de esplanada aterrar-nos em cima.

16.6.04

Resignação

Na rua, vejo um vizinho que passeia os seus dois cães. Fuzila-os com ordens, ameaçando-os com castanhadas em resposta à desobediência. A certa altura apercebe-se que observo a sua incapacidade de mostrar aos animais quem manda na relação, e que também eu estou acompanhado de um cão. Murmura na minha direcção, presumo que à procura de reconhecimento: «Que chatos!». Comigo não tem sorte. Já há muito tempo que em minha casa se vive assumidamente numa ditadura de inter-dependência.

15.6.04

Utopia

Se os meus pés não acabassem por se esfarelar pelos passeios da cidade, a partir de Maio e até ao final de Setembro, andava sempre descalço. Ao arrastar-me pelas ruas, calcado pelo ambiente febril de Lisboa, suspiro por uma selva onde o chão seja menos abrasivo do que sujo.

14.6.04

Os senhores do mundo

Na mesma entrevista que referi aqui, o Siza Vieira falava sobre "fazer algo de uma paisagem", esmagando, na sua oralidade arquitectónica, a escala comezinha da vida comum.

Nota: Por falar em senhores do mundo, aproveito para saudar estes rapazes que celebram hoje o primeiro aniversário d' "O Projecto".

Não votei

Teria votado se tivesse chegado a Lisboa a horas, apesar da derrota anunciada. Confesso que não me esforcei por aí além para que isso acontecesse, mesmo tendo optado por mudar da A1 para a A8 em Leiria, para tentar contornar o grosso dos inevitáveis acidentes do regresso a casa português. Não me senti "mobilizado". Apesar de não ter cumprido o horário eleitoral, fiquei contente por ter chegado a casa a tempo de ver o Inglaterra-França.

Não sei bem o que concluir deste meu domingo. Não querendo "mostrar um cartão amarelo" ao governo e não estando particularmente bem informado sobre questões europeias, aburguesei-me. Provavelmente ficou demonstrado que o meu pensamento político se orienta por imperativas linhas mestras (a minha vida não é isto) mas navega à vista do sound bite, ou mesmo que sou um pulha que não anda à pancada para levar. É justo.

Pessoalmente, entre outras coisas, não percebo a utilidade de um parlamento europeu, destes patamares adicionais de representatividade. Não percebo, nem tentei perceber, daí ter ficado calado. Continuo a pensar ser a melhor escolha para quem não sabe do que está a falar, sobretudo se for por culpa própria.

Para avaliações ao governo, espero pela altura devida, com uma mitigada confiança que a aposta na retoma vai ser ganha (por mérito próprio ou não), mas com a certeza de que o benefício da dúvida só chega para um mandato. Aguardo, numa "sampaíca" serenidade, que a sorte proteja o governo, mas sobretudo que nos proteja a nós dele.

Inflação

Um amigo queixa-se da subida dos preços. Diz que "antigamente" não era assim. O amigo tem a minha idade (26). Eu disse-lhe simplesmente que "antigamente" não era assim, porque "antigamente" os pais pagavam-nos as contas, porque os ricos pagavam mesmo a crise.

12.6.04

Sinais do tempo

O meu barbeiro de bairro não se chama Sr. Alfredo, não usa brilhantina, nem tem patilhas pelo meio da orelha. É brasileiro, tem o cabelo descolorado, ainda não descobriu que gostava de ser gay e é dono de um cabeleireiro unissexo.

Dúvidas europeístas

Não consigo perceber se é mais parolo pendurar uma bandeira de Portugal na janela/carro, ou se achar que pendurar uma bandeira de Portugal na janela/carro é parolo. Este pré-orgulho em onze compatriotas nossos que jogam à bola e ganham dinheiro a mais, de um certo ponto de vista, faz-me lembrar o Rock in Rio, fantasia em que a inteligentsia nacional também teve alguma dificuldade em embarcar visto tratar-se de uma vaga de fundo popular. Talvez farta de ver os outros a deleitarem-se no fenómeno mercantilista, resolveu refugiar-se numa ideia de turismo no "intelecto real" para, sem remorsos, dar um saltinho à Bela Vista e rir em primeira mão. Presumo que se a selecção não se ficar pela fase dos grupos, também iremos ver os pensadores do burgo a correr para apanhar o eufórico e desgovernado comboio.

Resumindo, acho esta revolta contra o "carinho em torno da selecção" um patético desperdício de energia. Como diz o outro, se é para entrar em guerras, mais vale que seja contra o desemprego. No meu caso, como um primo meu resolveu ter a ideia peregrina de se casar à hora do Portugal-Grécia, da Europa só vou eventualmente ver o boletim de voto no domingo. Mas admito desavergonhadamente que, mesmo à sombra de um altar, vou chorar em surdina a cada golo luso gritado pelo Jorge Perestrelo.

9.6.04

Campanha

Não pedia muito desta campanha. Pessoalmente queria apenas que os tipos que se preparam para ir para o Parlamento Europeu me explicassem o que é que vão para lá fazer. Em vez disso, trocam mimos sobre características físicas dos candidatos, fogem do rumor sobre uma hipotética ponte no dia 11 como o Diabo da cruz, e espantam-se com as virtudes do sabão macaco. Como se não bastasse, arranjam maneira de, num exercício de caciquismo pestilento, matarem um cabeça de lista. Presumo que seja esta a versão portuguesa do terrorismo pré-eleitoral. Para quê recorrer ao Bin Laden, quando nos temos a nós próprios?

8.6.04

A causalidade na condição de prima-dona

Leio a entrevista ao Siza Vieira que o Manuel Graça Dias fez para a TSF em 1997, no programa "Ao volante, pela cidade". A certa altura, a eminência fala de uma "delicadeza absolutamente magistral" e, logo de seguida, de uma beleza igualmente magistral. Interrogo-me se foi graças à sua capacidade de reconhecer algo magistral que ele se tornou num reputado arquitecto, ou se esta sua condição é que lhe permite fazer qualificações de uma forma tão definitiva.

Cortina

Ontem, no final dos Anjos na América, abateu-se o silêncio. Vi-me forçado a não fazer nada em relação a isso, enquanto esperava no escuro pelo fim do meu dia.

7.6.04

Madonna

A Madonna passou de estrela da música pop, a "mulher extremamente inteligente apesar do seu passado". Não sei bem como se deu esta transformação, mas suponho que deve ter sido pelo facto do número de álbuns que ela vende não ser inversamente proporcional à sua idade. É um fenómeno parecido com o do Johnny Cash, na música country, mas, no caso da Louise Veronica Ciccone, com a necessidade de manter um corpinho cheio de vitalidade, durante décadas.

Depreende-se que na efemeridade da pop, qualquer artista que consiga enganar duas gerações consecutivas, sem ter morrido, só pode mesmo ser um génio. Isso ou conhecer uns tipos que são bestiais a fazer estudos de mercado.

O retorno da doença bipolar

Há quem defenda que a amizade se funda sobretudo no respeito pelo indivíduo. Eu acredito nas tentativas de intervencionismo. Gostava de pensar que esta crença seria fruto de uma heróica generosidade, mas vejo-me forçado a admitir que é mais provável que seja apenas intrinsecamente alcoviteiro, ou até mesmo ridiculamente masoquista.

4.6.04

Dilema

No Clube VII, um dos ginásios (ou wealth clubs, como lhes chama a Inês) supostamente mais elitistas de Lisboa, foi recentemente acrescentado o complemento cénico que faltava para vincar essa mesma imagem de marca: dois voituriers de origem africana.

Visto que o dito clube está instalado em pleno Parque Eduardo VII, entre os autocarros das manifestações da CGTP, os turistas sexuais e o número excessivo de sócios, o sofrimento para encontrar um lugar onde depositar o carro já há muito que era praticamente inevitável. Sendo assim, a gerência do Clube VII lá arranjou maneira de resolver o problema, ainda para mais, com a teatralidade que se impunha.

Contudo, não consigo deixar de pensar na problemática do recrutamento dos dois rapazinhos. Presumo que os tios, tias e sobrinhos exigissem alguém "apresentável", afinal de contas um antro de gente que se pretende bonita tem que ter uma fachada a condizer, tecnicamente proficientes de modo a não danificarem os seus imaculados puros-sangue, e sobretudo "de confiança", não fossem eles fugir com os BMWs lá para aqueles bairros onde eles vivem.

Por muito neo-colonialistas que os frequentadores sejam, presumo que estas três características não sejam propriamente as primeiras bolas a sair do saco quando pensam em criadagem PALOP. Acredito que mesmo "mostrando-lhes quem manda", alguma daquela malta de topo que vai para ali suar as estopinhas, deve engolir em seco ao entregar-lhes as chaves.

Talvez a forma que encontraram para ultrapassar este potencial obstáculo no caminho que os levará a um corpo digno dos raios de sol que recebe durante o ano inteiro, esteja relacionada com considerar estes dois jovens e a sua arredia existência como mais um dos muitos fardos das privilegiadas condições em que vivem. Um fardo que esta relação paternalismo/necessidade transforma, numa sublime ironia, em tendão de Aquiles de toda a estrutura.

Provas de que Deus não existe

Hoje voltei a ver uma mulher de boné. Como se este arrepiante entendimento da condição feminina não fosse suficiente, era um boné azul-cueca que condizia com um top da mesma tonalidade.

3.6.04

Revisionismo

Vivo numa casa onde todas marcas do passado foram deixadas por mim. Pintei os muros com a minha história privada. Dentro daquelas quatro paredes, as únicas coisas que me antecederam foram as paredes em si. A passagem pela porta da entrada implica um salto quântico temporal, onde a história como conceito universal e estruturante se extingue abruptamente, para ser moldada e progressivamente reescrita.

Ritmos

Vinha no carro a ouvir o primeiro disco do Carl Hancock Rux e a pensar que prefiro sem dúvida a poética da dita spoken word, à palavra esmagada pelo ritmo do hip-hop. Acho que essa preferência está associada a uma ideia que li concretizada pelo Filipe Seems, em entrevista no DNA de sábado passado, onde fiquei a saber que o René Char tinha dito que o poeta devia deixar vestígios da sua passagem, e não provas, já que só os vestígios fazem sonhar.

No hip-hop, o sonho é frequentemente acorrentado pelo carácter definitivo e rochoso das batidas. O significado das frases é como que "provado" pela métrica rigorosa, é limitado pela realidade que originou a música. A "palavra falada", por oposição, é solta, curvilínea, deixa-nos apenas vestígios que fazem com que as composições tenham tanto de nós como do autor, o que se traduz numa certa plenitude discursiva que eu não consigo associar à chamada "poesia urbana" do rap.

2.6.04

Os limites da racionalidade

Comprar um carro não é um acto racional, e muito menos um investimento. A desvalorização é garantida, mesmo nos carros a diesel, ao contrário do que a ciência popular parece indicar. Assim que trocamos euros por um carro, começamos a deitar dinheiro à rua. A partir daí, as únicas escolhas que nos restam esgotam-se em torno da determinação do ritmo a que o fazemos.

Um carro deverá sempre ser comprado com paixão, ou com indiferença. Nunca com pretensões a negociatas amadoras. Devemos assumir com frontalidade que na melhor das hipóteses não passará de um brilho fugaz ou de um mal necessário e tentar minimizar os estragos deste inevitável desvario emocional. Para o fazermos apenas temos duas alternativas: ou compramos um Porsche, ou nos atiramos ao primeiro Opel Kadet de 1980 (ou equivalente) que virmos.

A razoabilidade da primeira reside no facto de alguns especialistas dizerem que é a marca que se desvaloriza menos, tornando-se assim numa forma aceitável de estancar parte da sangria e, simultaneamente, de nos deslocarmos. Se essa opção não estiver disponível, ou se procurarmos soluções mais radicais para defender o pé-de-meia, temos forçosamente que escolher o outro extremo da escala e adquirir um carro que já nem a soma das peças valha. Pode não proporcionar viagens tão furiosas, mas ao menos podemos dormir em paz sabendo que, também neste campo, não se pode cair do chão.

1.6.04

Cães e gatos

Não percebo o porquê da dupla. Presumo que seja uma imposição do mercado, o mercado do "acompanhamento", onde são vendidas presenças. Pessoalmente, não gosto de gatos, não gosto de vultos, de relações baseadas em incompreensões escorregadias. Talvez por serem demasiado "humanas". Prefiro uma relação comercial menos complexa e garantidamente equilibrada, no que toca a animais de estimação. Fico-me pela troca doseada de comida por proximidade.