Descoberta Acidental
As paredes de minha casa não têm cheiro.
Vivo rodeado de pessoas cujo maior prazer na vida é chegarem 10-12 minutos atrasados ao escritório, que vão para casa às 6 em ponto pela mesma razão que chegam atrasados de manhã, que não pedem recibos porque sem impostos é mais barato, que passam a bola "a outro e não ao mesmo". Há quem não acredite que os americanos tenham ido à Lua, eu não acredito nos portugueses.
Há anos que recebo chamadas no telemóvel de pessoas à procura de uma Diana. Já falei repetidas vezes com amigas da Diana, já conversei com uma senhora que devia ser a mãe da rapariga, já partilhei a incredulidade colectiva, fazendo os possíveis para que percebessem que não tinha raptado a Diana, que se tratava apenas de uma linha cruzada (se é que as linhas cruzadas continuam a existir) mas aparentemente, nesta twilight zone comunicacional, continuo a ser a Diana. Ainda ontem recebi uma mensagem das minhas primas "Rita Franc e M Mar" a agradecer uma visita. Já pensei em partir à procura do meu outro eu, no que seria uma pequena aventura bipolar, mas a possibilidade de me reencontrar numa rapariga de catorze anos de Rio Tinto nunca foi grande incentivo para resolver o meu problema de identidade.
Sou invadido por um súbito impulso de cuspir sangue quando saio à rua e me apercebo que, ao fim de uns meses de inverno, não ter frio é quase sinónimo de ter calor. Mais difícil do que digerir a inesperada "destropicalização" da nação é tolerar a habituação a estas noites que não impõem vodkas tónicas à varanda.
Há quem trave para não atropelar pombos. Eu prefiro passar-lhes por cima e viver com um amargo arrependimento enquanto espero pela redenção.
"Um homem livre é um homem tolerante". Esta deve ser a única citação recorrente na minha vida. Presumo que tenha saído de uma encíclica. Pelo menos foi-me transmitida por um católico fervoroso, numa altura da minha vida em que dei por mim a fazer um exame de "aptidão cultural" que implicava ler uma dessas santas obras. Talvez não seja uma citação, talvez seja apenas uma memória corrompida, uma redução proselítica. O que é certo é que me persegue como o refrão de uma música do Filipe Gonçalves, que teria tido a infelicidade de ouvir antes de sair de casa. Tropeço permanentemente no chavão, na facilidade da fórmula, mas, mesmo estando parcialmente disponível para a libertação, sou incapaz de interiorizar o ensinamento. Talvez me seja impossível digerir o truísmo enquanto não conseguir deixar de massacrar os outros de modo a tentar obrigá-los a ter a vida que eu próprio gostaria de viver.
Um cínico pretensioso e poliglota parte do princípio que as traduções falham e que falham fruto da ignorância do tradutor. Em última análise, está preparado para que essa mesma ignorância latente destrua um livro. No entanto, uma má tradução (ou um mau tradutor) pode salvar um mau livro, recorrendo em larga medida à componente criativa do erro. No caso de "O Grande Salto", traduzido para a Teorema pela Sr.ª D. Maria Augusta Júdice, isso acontece quando, entre diversas transmutações desastradas, a senhora nos explica, numa proverbial e rendentora "N. da T.", que o dub é "um tipo de música reggae marcado por sons estranhos, inesperados e descontínuos". É simultaneamente trágico e tocante ao ver alguém a debater-se em público.
O portunhol deve ser o único dialecto bastardo do mundo que tem inerente a curiosa propriedade de ser mais embaraçoso para quem o fala do que para quem o ouve.
Há meses que, para além do desfilar da paisagem, não me acontece nada no trânsito. Ando a ficar sem referências.
Sendo certo que é suposto termos medo da noite (ou de noite), é igualmente certo que, de noite, é suposto termos medo de nós próprios e não do mundo. Nas sombras não há espaço para seis mil e quinhentos milhões de pessoas, só mesmo para alguns fantasmas e umas fantasias sexuais recorrentes.
Não sendo particularmente miserável nem toxicodependente, tenho de admitir que, de uma perspectiva puramente corporativista, o meu principal problema com a miséria e o tráfico de droga é o facto de não me poder passear a meio da noite no interior de edifícios abandonados, sem ter um razoável medo de ser atacado por uns tipos com fraca dentição, provavelmente armados com seringas. A moral, tal como o policiamento, quer-se de proximidade.
O resultado prático de estarmos permanentemente ligados uns aos outros, mas cada vez menos juntos, é que a única coisa que nos acontece em grupo é ouvir histórias sobre o que nos aconteceu individualmente. A ilusão da distância faz com que tenhamos de sobreviver sozinhos às nossas próprias ideias.
Tenho o hábito de trocar centenas de euros por livros que não vou ler. Cronicamente indisciplinado, é certo que nunca serei um tipo esclarecido. No entanto, tenho a patética esperança de ficar lá perto: a dois ou três metros das prateleiras.
Este fim-de-semana, o que eu fiz pelo mundo foi deixar de responder a toques, kolmis, etc., originários de pessoas com mais de dezasseis anos e/ou com rendimentos brutos mensais superiores a dois salários mínimos nacionais. Para o próximo, talvez comece a separar o lixo ou vá votar.
Hoje sonhei que o Elton John me tinha telefonado a dar os parabéns com um dia de atraso e apresentando-se simplesmente como "o Elton". Talvez o facto de estar numa first name basis com o Elton John fosse suficientemente sumarento para a chave da interpretação deste sonho residir nessa estranha relação. No entanto, parece-me que não ter alertado "o Elton" para a data correcta do meu aniversário é o ponto fundamental da coisa. Poderia assumir que não o fiz por ter ficado impressionando com a dimensão planetária do meu interlocutor, numa demonstração clara de insegurança face à imagem de uns implantes capilares de primeira água mas, por outro lado, considerando este tipo de telefonemas mais importante para quem telefona do que para quem os recebe, parece que a questão se resume uma vez mais à minha esquiva nobreza de espírito que aparentemente só se manifesta com uma dose generosa de laxismo pré-consciente.
Desde o advento do "Sexo e a Cidade" que o mundo se tornou desnecessariamente complicado: as mulheres passaram a andar pelas ruas em pequenos e despreocupados grupos que, protegidos por uma fachada de auto-suficiência, deixaram de cruzar olhares com estranhos.
Tive duas namoradas pelas quais me apaixonei porque me deixavam falar. Uma delas era a típica paixoneta de Verão: pele morena, bonita, com uma voz rouca de sedutora que poucas vezes tive a oportunidade de ouvir. Não tinha nada para me dizer e, talvez por isso, me tenha largado à beira da estrada a meio do Inverno, quando eu próprio já tinha assumido tonalidades mais amareladas. A outra montou a armadilha perfeita: fez-se parecer interessante porque me ouvia, estratagema que me deu bastante mais trabalho, mas que acabou por ruir quando eu finalmente me calei. Não foi à toa que, em criança, andei cinco anos no judo sem passar do cinturão branco. Já nessa altura devia ser evidente que nunca me conseguiria defender de quem usasse o meu peso a seu favor.
Não queria com isto insinuar que "o mundo" seja um sítio bom, ou pelo menos melhor do que um spa na Indonésia, queria apenas dizer que a revista é bonita, é uma meta aspiracional válida e é igualmente uma zurrapa editorial, como, enquanto reflexo do zeitgeist, inevitavelmente teria de ser.
A revista Blue Travel tenta vender uma papa intangível de lazer a que os seus editores chamam "espírito blue". Algo que supostamente correria, dormente, nas veias dos seus leitores, gente ambiciosa, bem vestida, hedonista em regime poseur, decidida a fazer-se à estrada num assomo de romantismo regurgitado e empacotado em vácuo, pronto para ser servido num qualquer recanto paradisíaco "por descobrir", ao preço de 625 euros por noite, sem pequeno-almoço. Gente que gostaria de ver o mundo ou, para não ir mais longe, a rua, como o sítio onde vamos parar quando nos enganamos na porta de entrada da sala de aromaterapia.
Cada vez mais me convenço que campanhas de prevenção rodoviária realmente úteis não têm forçosamente de passar por obrigar a Brigada de Trânsito a inventar mais um nome mirabolante para uma qualquer "operação" em época festiva. Para reduzir drasticamente o número de acidentes dentro das cidades, bastaria, por exemplo, explicar às pessoas que só vale a pena passar sinais vermelhos quando se vai virar. O trânsito é o habitat natural da racionalidade limitada.
Mais trágico do que as mulheres não verem em nós o que nós vemos, só mesmo não verem nelas o que nós vemos.
Há dias em que tenho uma sentida esperança de encontrar alguém a bloquear a entrada da minha garagem, quando eu estiver a voltar para casa. Para a explicação desta declaração ganhar um vago aroma a literatura, podia desenvolver uma narrativa lamentável sobre a inesperada nobreza de alguém que nos dá a oportunidade de mudar de vida apenas por nos impedir de entrar em casa, mas não o vou fazer. Convém mentir com parcimónia, mesmo quando se está a tentar escrever um post à volta de um não-tema. Nesses dias apetece-me mesmo é andar à pancada com idiotas insuspeitos ou, pelo menos, sonhar com isso.
Caro Santos, obrigado pela preocupação. Há uns tempos que este blog anda a tentar empurrar-me para fora do ninho, mas aparentemente não há como me desmamar. Se no início pensava logo, tinha um blog, agora apercebo-me que a relação foi subvertida: tendo abandonado (sob a forma tentada) o blog, deixei de pensar. Sem posts para escrever, o máximo que consegui fazer durante semanas foi preocupar-me com o facto de, aparentemente, ninguém na minha freguesia guiar um Jaguar. Impõe-se claramente o regresso da disciplina.
Tenho algumas saudades do tempo em que o papel acabava e os rolos só tinham aproximadamente 36 fotografias, do tempo em que o passado não tinha tradução binária, não era medido em gigabytes e não se podia se podia reproduzir e partilhar depois de termos ido ao Media Markt pagar coisas em doze vezes sem juros. No fundo, acho que tenho saudades do tempo em quem nem todas as vidas eram memoráveis. A começar pela minha.
Passada uma época de hostilidade gratuita, dou por mim a gostar de mães. De mães felizes acompanhadas pelos seus filhos. O mais estranho de tudo isto é andar a gostar das raparigas não como um projecto sexual, mas como quem gosta de um postal. Pensando bem, isto não é estranho, é apenas intimidante.
Depois de repetidas efabulações, hoje dei-me finalmente ao trabalho de descobrir quem eram as "Mónicas" da Travessa das Mónicas. Aparentemente, era o nome dado às freiras de Santa Mónica ou da Ordem de Santo Agostinho (filho de Santa Mónica) que habitavam o Convento das Mónicas, situado na tal travessa. Descobri igualmente que (entre outras coisas) a mãe espiritual destas senhoras era uma mulher que "suportou infidelidades conjugais, sem jamais hostilizar ou demonstrar ressentimento contra o marido por isso", que aprendeu "a não o contrariar com actos ou palavras, quando o via irado" e que converteu o filho ao cristianismo à força de orações e lágrimas. Tinha esperança que a origem das "Mónicas" fosse algo de mais terreno, mais propício a historietas incipientes delineadas a caminho do escritório, mas nada como uns séculos de história, uma Maria Teresa Horta e uma APAV para banalizar a santidade de uma mulher.
Já há muito tempo que decidi que ia ser uma pessoa que diz disparates e não uma que os ouve.
Boas listas são um objecto bestialmente estimável. Listas de ódios têm uma abrangência temática ilimitada e dão-nos a oportunidade de sermos infinitamente picuinhas, ou abertamente snobs, qualidades que só por si as colocam no topo do ranking global das listas personalizadas. O meu problema pessoal em elaborar listas de ódios é simples: rapidamente daria por mim a odiar tudo, for the sake of it. Este facto só por si seria bastante preocupante, pelo que me poupo ao momento de introspecção que daí adviria. Não me apetece perder uns minutos a tentar descobrir como é que se consegue conciliar o ódio generalizado com a joie de vivre porque sei que acabaria, mais cedo ou mais tarde, por me sair com uma tirada transbordante de humanismo bacoco, em jeito de resolução existencial. Alguma coisa do tipo: adoro tudo o que odeio. É um exercício de auto-ajuda perfeitamente dispensável.
Há quem goste do verão pelos umbigos, pelos decotes, enfim, pela panóplia de mimos que o calor propicia. Pessoalmente gosto de ombros, de ombros dourados que o sol povoou laboriosamente com sardas. No entanto, gosto igualmente desses mesmos ombros longe da vista, enterrados no pino do inverno, puros. Gosto sobretudo da sedução que sobrevive às estações, que se adapta, que se apropria langorosamente das mutações sazonais. A revelação em si não me diz grande coisa: a perdição vem com o acto criativo.
É deprimente descobrir que, a partir de uma certa altura da vida, só mesmo bêbados é que conseguimos dormir mais de seis horas por noite e/ou acordar depois das onze da manhã.
Nos últimos tempos, fiquei sem nada para dizer. Há quem aproveite estas ocasiões para se masturbar. Eu optei por perder dias numa deriva vegetativa à volta da rendição. Da rendição que nos espera à noite e nos ameaça de manhã. Tudo isto para tentar construir um quadro analítico que me permitisse determinar de forma definitiva se, estando sozinho, é mais deprimente adormecer ou acordar. Bem vistas as coisas, mais lirismo galopante, menos lirismo galopante, a masturbação anda sempre muito perto da superfície.
Gostava de poder citar grandes e pequenos pensadores, de regurgitar conhecimentos tão ecléticos quanto inúteis, meticulosamente dispostos num extenso arquivo mental, mas, infelizmente, a minha cabeça nunca chegou a ser o que era: dou-me por satisfeito quando consigo citar-me a mim próprio e não uso a terceira pessoa para o fazer.
Há dias em que uma reduzida lucidez só nos permite a indignação de proximidade. Nesses dias, apercebemo-nos que é insuportável viver num país onde alguns peões, ao atravessarem numa passadeira, abrandam o passo quando detectam um carro a aproximar-se porque a lei lhes confere esse direito.
Suspeito que o homem mais feio do mundo viva na minha rua. É um tipo autoconfiante e orgulhoso da sua fealdade, que observa o mundo com altivez da porta de um tasco imundo. Já lhe teria tirado uma fotografia para arquivo, mas tenho algum medo que me morda ou até que me humilhe.