27.2.04

Secret handshake

Instalou-se, entre os rapazes da minha faixa etária, um fenómeno grupal associado ao "Lost in Translation". De repente, a sensibilidade desceu à Terra. Numa festa, vejo um desses rapazes sussurrar a outro «Sabes o que é que é isto?». "Isto" era a banda sonora do filme, que estava a tocar naquele momento. Nasceu uma nova irmandade, com uma linguagem velada própria.

A crença fundadora desta irmandade é a seguinte: se desenvolvermos, ao longo da vida, a nossa sensibilidade de uma forma que nos permita chegar à idade da reforma transbordando uma espécie de "ternura dos cinquenta", com um toque de amargura e de cinismo decadente, o destino reserva-nos uma loira de vinte anos, formada em filosofia, que não sabe o que há-de fazer da vida. Reconheço que a partir desta tese se pode desenvolver um ideário perfeitamente válido para iniciar uma seita.

Viajar, ou talvez não...

Anda por aí uma música qualquer onde uma rapariga canta «DJ take me away, to another place". É uma utopia bonita. É verdade que por vezes temos a banal sensação de sermos transportados pela música, mas infelizmente não é isso que se passa. O melhor que os DJs podem fazer é trazer até nós o resto do mundo, as memórias, mas não conseguem é livrar-nos da rapariga de bigode que insiste em nos abordar na pista, ou do amigo bêbado que nos cospe enquanto fala a 2 centímetros da nossa cara.

Promoção

Após o final de uma relação amorosa, todas as outras mulheres adquirem imediatamente a qualidade única de não serem as nossas ex-namoradas/mulheres/amantes.

26.2.04

Evolução

Descobri através da 2: que uns linguistas descobriram que dois terços das nossas conversas tratam de mexericos sociais, e que o terço que sobra é ocupado sobretudo com a transmissão de informações técnicas, e com negociações várias.

Ao deslocarmo-nos de um mundo natural instintivo para um mundo social complexo, pelo caminho tomando conta da nossa própria evolução biológica, tornou-se cada vez mais importante saber algo sobre quem está ao nosso lado, do que sobre o cenário que nos rodeia. Passámos a viver na alteridade. Os outros, para além do inferno, passaram também a ser o nosso mundo. Hoje em dia é mais relevante para a nossa sobrevivência saber que alguém anda enrolado com a secretária, do que a tabela das marés, ou a altura do ano em que há morangos.

Primeiras impressões

.

A Amazon inglesa mandou-me o "Scoop" do Evelyn Waugh. Olho para a capa de uma forma saudosista. Pessoas esquecidas no passado, imaculadas. Gosto da forma como certas fotografias retratam as tais profundezas insondáveis da alma. Quase tenho vontade de comprar um segundo exemplar, apenas para manter intacto este casal, na sua contemplação silenciosa.

25.2.04

Fuga bíblica

Hoje, depois de ter acordado no Livro da Génesis, Capítulo 7, versos 10 a 24, lembrei-me imediatamente do "momento zen" de segunda-feira, onde um locutor de rádio anunciou em sofrimento que em Buenos Aires estavam 35 graus. Depois de um suspiro sentido, lá me fiz à estrada...

Sobre o 25 de Abril que paira sobre este blog (também para o Pénible e para o Tawzeeto)

Como já o disse antes, aqui e aqui, penso que o 25 de Abril como acontecimento traumático que foi, teve como consequência nefasta a esquerdização da nossa sociedade. Para explicar porque razão a acho nefasta vejo-me forçado a entrar num campo onde me sinto pouco à vontade, devido precisamente a minha mediania, onde reconheço a minha ingenuidade e mesmo a banalidade das minhas opiniões, mas este blog (e o resto do mundo) está cá para alterar esta situação.

Considero-me um tipo de direita, ou centro-direita, mas não me identifico totalmente com uma visão tão redutora quanto esta. Não sou adepto de pensamentos únicos, nem defendo a tese do mundo a preto e branco, mas sim a do mundo com infinitas tonalidades de cinzento (como diria o outro), e aprecio sinceramente a ponderação associada ao reconhecimento desta realidade. Tendo vivido toda a minha vida com o produto do 25 de Abril, a liberdade é para mim um dado adquirido. Talvez esta postura esteja errada, mas sempre achei que o maior tributo que podíamos prestar aos que me possibilitaram pensar assim é o de evitar que esta liberdade volte a ser algo para além disso mesmo: um dado adquirido.

Não me regendo por uma lógica política ou de poder, gosto de acreditar numa terceira via, não forçosamente na Terceira Via, não numa marxista luta de classes ou em qualquer outro tipo de confronto ideológico que possa resultar numa absurda radicalização de posições. Penso que a única forma de desenvolver o país será através de uma cooperação realista, pragmática e não instrumentalizada pelo poder político, entre os diversos "sectores" da nossa sociedade, na linha do recente e talvez histórico acordo da AutoEuropa. O 25 de Abril, pela imposição de um reflexo pavloviano de esquerda, impede (ou tem impedido) essa cooperação. Ao fim de 30 anos ainda estamos à mercê da tal instrumentalização, graças a uma ignorância generalizada, o que tem retardado a possibilidade de um melhoramento generalizado das condições de vida em Portugal.

Tendo isto em consideração, abraço com agrado meios incoerentes, preferindo optar por uma coerência de objectivos, seguindo um caminho que estará eventualmente para além da esquerda e da direita. É certo que esta visão, que pode ser considerada demagógica e totalmente primária, tem os seus perigos, ou, como me disseram uma vez, não sendo nem de esquerda nem de direita, tenho forçosamente que ser o Guterres.

Tudo isto para dizer que sim, de alguma forma o 25 de Abril teria impedido (ou atrasado) a ascensão social de uma classe média, inserida num movimento mais abrangente de desenvolvimento nacional.

Enfim, foi esta a forma que encontrei de tentar resolver um mal-entendido numa caixa de comentários.

Nota: dentro de momentos este blog voltará à normalidade.

Sobre a Classe Média que vive neste blog (para o Pénible e Tawzeeto)

Ao chamar este blog "Classe Média" não pretendi tornar-me um representante de uma classe social. Quando aqui escrevo apenas pretendo representar-me a mim próprio, e mais concretamente à minha mediania. Não tendo criado uma persona blogoesférica, já que não tenho capacidade criativa para o fazer deliberadamente, a minha mediania define-se sobretudo por oposição aos que se encontram acima e abaixo de mim, numa hipotética escala do conhecimento, e só nessa escala.

Ao definir-me como um tipo mediano, e a este blog como um produto igualmente mediano, procuro apenas usar essa condição como um veículo impulsionador da minha própria ascensão "social", limitada à tal escala do conhecimento. Ao pavonear as minhas limitações sinto um dever moral de eliminá-las, e esse é um dos objectivos (ou princípios fundadores) deste blog, tal como foram atabalhoadamente declarados.

Sendo assim, quando me refiro à classe média neste blog tento sempre fazê-lo no sentido que descrevi acima, sendo um conceito que não deverá ser levado muito a sério. É óbvio que esta utilização algo hermética do termo pode dar origem a outras (e naturais) interpretações, tendo qualquer uma delas uma carga simbólica demasiado complexa para uma redutora troca de comentários. Um desses meus comentários ao post sobre o rock português utilizou a classe média de um forma híbrida, que tanto podia encaixar-se na definição que eu criei, como na definição mais generalista. Erro meu. Realmente o Abril não tem nada a ver com a minha ascensão "social", mas terá algo a ver com uma certa incapacidade estrutural de desenvolvimento do país, mas isso ficará para um post posterior que constituirá a segunda parte da minha resposta.

23.2.04

Encalhados

Na manhã de uma segunda-feira propícia à gazeta, gera-se uma empatia entre as pessoas que se encontram na rua. Trocamos olhares como se disséssemos: «Pois é. Cá estamos. Também preferia estar em Loulé a consagrar o Mário do Big Brother como Rei do Carnaval 2004, ou na Serra da Estrela, a caminho da Torre, preso numa fila de trânsito interminável, numa tentativa de reclamar o metro quadrado de neve a que tenho direito, mas estou aqui e já vou pegar ao serviço atrasado porque o patrão está no Brasil».

Portugal, 1980-1984

Na altura era novo demais para me aperceber desta realidade mas, posteriormente, o rock português do princípio dos anos 80 ficou na minha memória como o expoente máximo de uma certa portugalidade, urbana, jovem e plena de imediatismo. A abrilada pouco significado tem para mim, mas ao ouvir um disco como este compreendo um pouco melhor como seria a vivência delirante do despontar da liberdade criativa, pós-Cortina de Ferro. Apesar de ingénuas e rudimentares, estas músicas e a estética que lhes estava subjacente, tiveram um papel destacado na minha "educação sentimental".

Sumo

Há pessoas que falam de uma forma sumarenta. Não pela riqueza do seu vocabulário, ou outra qualidade comparável, mas porque é claramente audível o chapinhar reptilário da língua, na saliva que se aloja na boca. Em nome de uma dicção impecável produzem um ruído aquoso insignificante, que rapidamente se torna ensurdecedor, reduzindo a nada essa oralidade imaculada.

20.2.04

Sous les pavés, la plage!

Às vezes prefiro refugiar-me na ignorância para poder deixar-me levar por uma certa poética linguística que associo ao francês. A sonoridade das palavras, divorciadas do seu significado, envolve-me numa fragrância humanista. É a terceira fase da aprendizagem da apreciação da poesia: para além do assunto, para além do estilo, uma frase que veicula uma reminiscência.

Consciência social

Um amigo que vive em Paris, relatou-me a passagem de ano dele onde, algures a meio da noite, passou a pé perto dos Campos Elísios e se deparou com um ajuntamento de jovens dos subúrbios que se entretiam a destruir montras e afins, devidamente acompanhados pela polícia de choque. No final da noite, voltou para casa de metro, rodeado pelas pulsões alcoolizadas dos restantes parisienses.

No Janela Para o Rio, leio um e-mail que relata o facto de na Noruega os ministros andarem de metro e serem tratados por tu pelo cidadão comum, totalmente à mercê da vontade do povo.

Realmente não há nada como uma sociedade com poucos refúgios para desenvolver uma consciência social. Só o facto de sermos obrigados a andar a pé, ou de metro, é o suficiente para nos impedir de fugir para a frente, para nos responsabilizar pelas nossas selvajarias, forçando-nos a lidar pessoalmente com a marginalidade, com a pobreza, com as disfunções sociais em geral. Não podermos refugiar-nos dentro de um carro, ou de um condomínio fechado, vincula-nos publicamente às consequências dos nossos actos, das nossas opiniões, do nosso voto. A vulnerabilidade obriga-nos à integridade.

Prêt-à-porter

No Verão, a vida, como os corpos, está nua, leve. Com a chegada do mau tempo, o dia-a-dia é contaminado pela complexa indumentária que nos facilita a sobrevivência, e torna-se opressivo, penoso, denso. Durante os meses de Inverno, o deleite é conquistado a pulso.

19.2.04

Generation gap

Quando falamos ao telemóvel, é fácil identificar um interlocutor acima dos sessenta anos. Três segundos depois de iniciarmos a chamada, há 70% de probabilidades de ouvirmos uma coisa semelhante a isto: «TMN. A sua chamada encontra-se em espera. Por favor aguarde...». A terceira idade não acredita em máquinas, em teclados, em coberturas de rede e muito menos na sua própria visão diminuída.

Antes de adormecer

Fiz um esforço sobre-humano para abrir uns olhos semi-cerrados que se passeavam pelas páginas de um livro e li isto: «O passado não pode ser reparado, apenas excedido». Se não estivesse a morrer de sono, ter-me-ia sentido de novo um jovem sem limites. Felizmente para a minha saúde mental, hoje acordei, levantei-me a custo e fui tratar da minha expiação com a ajuda de um ritual diário que, pelo seu vazio doloroso, nos aproxima do divino: fazer a barba.

Opções profissionais

Acabar uma relação amorosa com alguém, assumindo a condição de ex-qualquer coisa, é sobretudo enveredar pela carreira diplomática. Depois do luto, ficamos para sempre vulneráveis às résteas de intimidades alheias que foram ficando em nós ao longo dos anos. Em encontros futuros com as nossas ex-contrapartes, somos forçados a entrar numa dança para manter de pé um acordo implícito de não agressão, em nome dessas mesmas intimidades que ficaram para trás, contornando habilmente segredos comuns, tentando manter a relação na terra de ninguém.

18.2.04

Recantos

Lisboa tem vindo a ganhar cada vez mais recantos ao ar livre, ideais para abrigarem jovens paixões. Jovens porque à medida que os anos vão passando, essas mesmas paixões vão tendo necessariamente que preencher um requisito essencial: serem confortáveis, mas não forçosamente levianas. A paixão adulta desloca-se (também literalmente), no seu processo de amadurecimento, da rua para entre quatro paredes, ao abrigo dos elementos e do mundo em geral. A cidade e os seus esconderijos acabam por ser território quase exclusivo do arrebatado e franciscano amor adolescente.

17.2.04

Parece que na preparação para o casamento, os futuros casais têm que frequentar umas sessões de formação profissional de modo a prepararem-se para a vida conjugal, e a terem uma derradeira oportunidade de acabarem com uma relação sem complicações jurídicas. Algures no meio deste processo, se optarem pela cerimónia religiosa, serão confrontados com a inevitável necessidade de escolher um lado da barricada, quando lhes perguntam se acreditam em Deus.

Provavelmente devido às minhas limitações de tipo do meio da tabela, sempre tive alguma dificuldade em compreender este relacionamento dicotómico com a fé, este posicionamento imposto, com Deus ou contra Deus, como se determinados rituais fossem um caminho único para a transcendência, sufocando as nossas interpretações individuais da sacralização do amor.

Devaneios

Estava a ver o "Sete Palmos de Terra" e dei por mim a pensar que viver em Portugal, na passagem do terceiro para o primeiro mundo, seria provavelmente uma coisa que me iria marcar para o resto da vida. Pontualmente, sou assaltado por uma fé cega na minha geração.

16.2.04

Pequenos apontamentos

- Acho curiosa a forma como a "liberdade de imprensa" blogoesférica origina tentativas de parricídio. Depois do ataque generalizado ao Expresso, agora temos a revolta contra o Vasco Pulido Valente.

- Por muito que os jornais e as televisões me tentem convencer do contrário, confirma-se que as eleições presidenciais são só daqui a dois anos, logo, ainda tenho aproximadamente um ano e cinquenta semanas para ignorar o Santana, o Cavaco, o Guterres e demais proto-candidatos.

Casar

Sempre que vou a um casamento, fico com a sensação de que há naquela cerimónia um esforço genuíno de nos redimirmos com o passado. Depois de sairmos da igreja, sentamo-nos à mesa e começamos a ver que a consagração do amor entre duas pessoas não é mais do que um conceito abstracto, inatingível, para a grande maioria dos convidados, e que por comodidade se vê rapidamente relegada para a condição de fait-divers, entre um jantar de borla, um bar aberto e a "Macarena".

13.2.04

Houston, we have a problem...

Parece que o serviço de comentários do Blogger brasileiro está a dificultar o acesso ao meu humilde blog. Acho que os rapazes andam a fazer umas alterações no serviço. Não faço ideia como e quando é que isto se vai resolver, mas estou a considerar acabar temporariamente com a democracia directa no Classe Média. Aguardemos...

Agradecimentos

Como quem dá o que tem a mais não é obrigado, eu só posso mesmo agradecer com um linkzeco a este rapaz por se ter disponibilizado para me resolver um problema no código do Classe Média, e a este outro rapaz pelos elogios injustificados e pelos frequentes comentários que quase me fazem pensar que este blog é verdadeiramente interactivo.

Quinta-feira

As noites (de boémia) de quinta-feira são dos artistas, dos ricos, dos estudantes, dos profissionais liberais ou com horários flexíveis, e dos desempregados. Inevitavelmente, transbordam uma riqueza sociológica que as torna particularmente apetecíveis. Como se isto não bastasse, têm um aliciante adicional: não há conversas de chacha sobre o emprego, pelo menos na sua vertente mundana. É claro que podia, neste preciso momento, tratar de quebrar este equilíbrio infiltrando-me num qualquer bar e assumindo-me como operário, mas por respeito venho para casa escrever um post, remeter-me à minha triste condição e praguejar em surdina.

12.2.04

Detalhe

As manhãs no "Linha d'Água" (Jardim Amália Rodrigues no alto do Parque Eduardo VII), ao som de Caetano Veloso, varridas por um sol inesperadamente quente, são dadas à contemplação. Um senhor que estava sentado ao meu lado, certamente a pensar o mesmo que eu, resolveu não deixar o momento passar despercebido e brindou com uma Super Bock.

Lutas

Para além da miríade de guerras que o cidadão comum tem que encetar no seu dia-a-dia, nos últimos tempos surgiu uma nova que se trava sobretudo no plano psicológico: a do executivo vs. o marciano da EMEL. Esta guerra não é recente, mas a escalada de violência com a entrada em cena dos bloqueadores foi notória. Hoje em dia, há uma legião de executivos que, de modo a não terem que abdicar de trazer o seu carro para a porta do local de trabalho por imposição de um pseudo-braço estatal, perdem horas a analisar a psique dos seus concidadãos a quem distribuíram uma farda verde e uma impressora de multas de bolso, de modo a anteverem uma falha na sua lógica de repressão ("a glitch in the Matrix") e desencantarem um lugar inbloqueável. Eu juntaria mais uma proposta concreta para o debate em prol de um Portugal mais produtivo: acabar com a EMEL.

Realidade

Ontem apanhei por acaso o fim do "Reality Bites" no canal Hollywood. O amor da primeira metade dos anos 90 é, dez anos depois, um mistério. Já não consigo conceber uma vida consumida pelo amor, apenas pelo seu desaparecimento.

11.2.04

Comida de tasca

Tendo como mercado alvo a "classe operária", a comida de tasca tem como principal objectivo alimentar e não o de ser saboreada. Sendo assim, deve ser comida com sofreguidão, como se o corpo pedisse desesperadamente para ser reabastecido, sob pena de não conseguirmos acabar a refeição visto que a demora em ingerir uma papa indistinta transforma-a rapidamente num agregado de paladares diferentes, todos eles desagradáveis. É um típico caso onde o conjunto vale mais do que a soma das partes.

Reformulações

Expurgando a influência estatística das ofertas sexuais diversas, das preocupações alheias com a configuração da genitália masculina, e das propostas de refinanciamento de crédito à habitação, poderíamos passar a utilizar a fórmula "Diz-me que spam recebes, dir-te-ei quem és".

10.2.04

Ficções

Cada vez que entro no meu prédio, atravesso um deserto silencioso e sombrio de carros estacionados, deparo-me com uma luz branca fluorescente e sou confrontado com um lobby de elevadores naufragado, onde o meu único interlocutor é um painel onde tenho que inserir um código para ter acesso aos pisos superiores. Como cenários ficcionais para me entreter na subida de elevador tenho um filme do David Lynch, os "X-Files", Moscovo em 1981, ou finalmente um prédio com medo, em Lisboa, no início de 2004.

Morrer em campo

Há uns dias, um senhor nos seus cinquentas foi ao "Quem Quer Ser Milionário" dizer que nos tempos livres jogava futebol e praticava internet. Achei engraçada esta designação que de alguma forma denota o esforço que o senhor faz para combater a info-exclusão. Nos dias em que nem material para escrever quatro linhas arranjo, também eu ando a praticar internet, e a suar as estopinhas. Como me disseram em tempos: «quando não tens nada para dizer, escreve sobre isso mesmo». Já está.

É claro que também podia seguir a escola de pensamento que defende que quando não há nada de relevante para dizer, devíamos ficar calados, mas desenvolver essa ideia já implicaria linhas a mais, e aplicá-la nem me passa pela cabeça: estou refém de um sitemeter que definha...

9.2.04

Idiota

Sendo eu um dos «idiotas» que saudou o regresso aos bons velhos tempos do Woody Allen, devo humildemente tirar o chapéu aos 4 posts sobre o mesmo tema, que este senhor escreveu. Idiota custa-me a engolir, mas vejo-me forçado a fazer a devida vénia.

Adopção

Parece que agora é possível pessoas até aos 60 anos adoptarem crianças. Confesso que a ideia me faz alguma confusão. Pior do que isso foi ver no Telejornal as mulheres que se perfilam como mães, à luz desta alteração. Todas elas queriam adoptar por motivos totalmente egoístas: queriam um filho para tentarem lidar com desequilíbrios emocionais provocados por eventos traumáticos (doenças, falecimentos de outros filhos adoptivos, etc.), ou pelo inevitável e banal envelhecimento, já que do ponto de vista de algumas delas, se iriam sentir mais jovens com uma criança pela mão. No fim da reportagem, fiquei sem saber que destino seria pior: a deformação mental nas mãos do Estado, nas mãos de uma mãe com dificuldade em lidar com o passado, ou nas mãos de uma mãe com dificuldade em lidar com a menopausa. Venha o diabo e escolha...

Legitimidade

Sempre me interroguei sobre a existência daquele hábito radiofónico de identificar as músicas que vão sendo transmitidas, como sendo a música X, da banda Y, do Z, sendo o Z um membro qualquer da banda. Porquê este dado adicional? Porquê a fórmula: acabámos de ouvir o "O Teu Olhar (Comigo Acabou)" dos D'Arrasar, do Joca? Primeiro pensei que apenas estivessem a identificar a força criadora responsável pela obra, mas isso só faria sentido se essa força criadora existisse, o que não é o caso na maior parte do entulho que pulula nas playlists. Sendo assim, só me resta a alternativa da procura da legitimidade perante o auditório.

Ao identificar um dos membros das diversas bandas, as rádios mostram aos seus ouvintes que não estão apenas a vender discos, estão a divulgar informação privilegiada dos bastidores do mundo do espectáculo. A sua posição de "agentes culturais" possibilitaria o acesso a um conhecimento íntimo das celebridades, comprovado pela capacidade de individualização de membros dos grupos musicais, indiciando a densidade ontológica dessas mesmas celebridades e transformando o "Joca performer", no "Joca homem". Esta visão unitária pressupõe algo que vai muito além da redutora imagem colectiva com que o público em geral teria que se contentar, legitimando assim as rádios como transmissoras de música, via uma pseudo-investigação nos domínios da antropologia cultural.

6.2.04

Hipocondria

A mediatização da privacidade alheia, que trouxe para a praça pública o direito, a medicina, etc., fez de cada um de nós um especialista encartado em áreas até há pouco tempo totalmente obscuras para os leigos, tornando extraordinariamente complexas relações e situações aparentemente banais. No caso da medicina, em tempos idos, as terapêuticas amadoras limitavam-se em muitos casos à aspirina. Hoje em dia, a hipocondria generalizada instalou-se. O nosso olho treinado pelas televisões transforma qualquer dor num cancro em potência, e partimos imediatamente a correr à procura da quimioterapia, da urgência mais próxima, ou do próximo voo para Londres ou Nova York.

5.2.04

Abdução

Estava a ler aleatoriamente entradas num dicionário de filosofia e dei com a abdução, que consistiria em usar dados particulares para chegar a conclusões mais amplas. Definida de uma forma mais rigorosa, a abdução seria um "silogismo cuja premissa maior é certa e a menor provável". Muito bem. De seguida vejo que este conceito remete para outros como o princípio da verificação, a teoria da confirmação, o positivismo. Desisto. Só queria mesmo saber se teria legitimidade para falar de algo sem saber o suficiente para o fazer. Pelos vistos vou ficar-me pela minha ignorância actual.

Ou muito me engano

Ou o Dr. Mário Soares já está fora do prazo de validade. É impressionante como ainda é levado a sério por tanta gente com opiniões e/ou cargos políticos. Deve ser para não hostilizar a grande fatia de portugueses médios que ainda o trata por "Bochechas" e que voltaria a votar nele só para não ter que pensar muito.

4.2.04

Doenças urbanas

É curioso o processo mental que permite a materialização de pequenos pormenores do nosso universo quotidiano, de uma forma aparentemente aleatória. Só recentemente tomei consciência da disseminação silenciosa de escritórios por edifícios de habitação que foram vagando lentamente, por todo o centro de Lisboa, apesar dela me passar à frente dos olhos há bastante tempo. É uma espécie de cancro que se vai espalhando sob a forma de células de luzes alvas, cruas, que espalham um manto de claridade monótona e regular, por entre o brilho quente, aveludado e irregular dos pontos de luz domésticos. Se calhar nunca me tinha verdadeiramente apercebido desse fenómeno porque gosto de ouvir o silêncio nocturno da cidade, e preferi não me interrogar sobre a sua proveniência.

Ele há com cada uma...

Alertaram-me por mail para uma acrobacia engraçada: parece que um político norueguês nomeou o Bush e o Blair para o Nobel da paz. Não consigo perceber a que paz é que o tal norueguês se refere. Ele está a falar da paz no mundo em geral, ou especificamente à paz no Iraque? Eu também quero o fim da fome e da guerra, todos os dias penso nisso, mas ao menos a minha luta por essas nobres causas não tem a consequência desagradável de mergulhar países no caos, pelo caminho matando centenas de pessoas. Não querendo discutir a justeza da nomeação, ela parece-me algo extemporânea. Contudo, não deixa de ser irónico que entre os outros nomeados se encontrem o Hitler e o Milosevic, outro casal de arautos da paz.

3.2.04

Maturidade

Alguém maduro, tal como o Alain de Botton o definiu, é alguém que diz a coisa certa, à pessoa certa, no momento certo. Esta definição tem como subjacente a ideia que existem afirmações erradas, ditas às pessoas erradas, na altura errada, e que o processo de amadurecimento seria definido como o caminho que nos leva dessa combinação de erros, da vida instintiva, até a uma vida de virtude, repleta de momentos decisivos, de escolhas, que nos obriga constantemente a confrontarmo-nos com a nossa tendência natural para a fuga para a frente, para escolhermos não escolher. A alinhar por esta visão das coisas, o Nate é um tipo maduro, a Brenda caminha para lá, a Lisa continua a ser uma vaca, e o episódio de ontem do Sete Palmos de Terra (nº 31:"The Trap") foi o melhor dos que eu vi da nova série.

Errei...

Fui alertado para o facto de ter erradamente chamado "Eterno Feminino" a um programa da Antena 1, quando ele afinal se chama "Ponto G". Parece que o eterno feminino era o tema do programa, no dia em que me referi a ele. É um erro lamentável, mas o principal culpado disto tudo é o site da RDP, que ficou parado em 1997, apesar de nos tentarem convencer do contrário com as palavras "Rádio Digital" na homepage.

Pequenos crimes entre amigos

Vejo no jornal que há um hotel qualquer que oferece a estadia no dia dos namorados, na compra de um jantar com o menu "São Valentim" (49 euros por cabeça). Preocupa-me esta tendência comercial que visa explorar o nosso egoísmo, como instinto primário que é. Oferecem-nos uma desculpa para tentar o amor (ou simplesmente sexo), mas só o fazem se pudermos ser roubados ao jantar. É o afecto refém do mercantilismo.

2.2.04

Limites

Depois de ter visto as actuações do Sean Penn, nos seus dois últimos filmes, surgiu-me uma dúvida: a partir de que ponto é que um actor deixa de estar a fazer de ele próprio e passa a "imprimir um cunho pessoal" às personagens que representa? A Rita Salema também só faz dela própria, mas se calhar isso nunca lhe valeu um Globo de Ouro da SIC, quanto mais um da Hollywood Foreign Press Association.

21 Grams

No "21 Grams" parece-me que foi feito um grande esforço para transformar num monumento à perda uma história já mastigada vezes sem conta, usando uma montagem ardilosa, pouco conseguida e cada vez mais banal, que não faz mais do que dificultar a compreensão do enredo. Sendo o filme sobre a dor e a inevitável procura da redenção, sou alertado para a sua mediania pela falta de emoção que induz. Saí da sala a pensar que tudo aquilo era sobretudo depressivo, sem ritmo, o que é manifestamente pouco para um monumento. No entanto, gostei do realismo do cinema de proximidade que é utilizado, apoiado na excelente fotografia. As paisagens são rugas, lágrimas, corpos, intimidades. É uma pena que tenham sido em grande parte desperdiçadas.