28.2.05

Envelhecer em carvalho

Aos 27 anos os vinhos, a gastronomia em geral e as contingências adiposas em particular, insinuam-se. Mudamo-nos das tascas para os bons restaurantes com a naturalidade de quem já não beija desconhecidos porque o beijo passou a ser um preliminar, logo, sujeito a negociação. As redescobertas adiam-se e, aos poucos, vamos reconhecendo que a idade nos pôs finalmente ao alcance do que, mais cedo ou mais tarde, nos vai matar.

25.2.05

Compartimentos

Chego a sexta-feira e vejo-me forçado a fazer um esforço para tentar perceber se não ficou nada por resolver no fim de semana anterior. Algo que o excesso tenha consumido. É uma inevitabilidade deste ciclo das noites para amadores (sexta e sábado). Há quem use a rotina para lhe facilitar a vida, no meu caso, esta rotina é um problema. Literalmente: um problema. Chama-se vodka tónico.

24.2.05

Depois do dilúvio, a devida vénia

Muito obrigado.

Perto da Estefânia, hoje de manhã...

[Duas senhoras discutem, num autocarro em silêncio.]

- Aaai a estalada que eu levei!
- Ai eu também!
- Mas a minha foi à séria, uma estalada à séria!
- Também a minha!
- Deus levou-me! Fui até um campo sem fim. Disse-Lhe que queria ver mais mas Ele trouxe-me de volta...
- ...
- Deus tem-me ajudado muito.
- Foi uma estalada à séria.
- Bem, então até loguinho.

[E Deus sai de cena.]

23.2.05

Saudade

Depois do amor já não voltamos a ser livres. Ficamo-nos pela solidão.

22.2.05

Mais futuros


Conhecendo a Elza Soares apenas de a ter ouvido cantar durante dez minutos no carro de uns amigos, mantenho um relacionamento com a senhora baseado na ignorância. Para além do nome e da sua grafia pouco mais sei da sua vida. Sendo o desconhecimento um terreno fértil para a ficção e para o apontamento sociológico de pacotilha que tanto aprecio, assumi que, para uma cantora, ter o nome de "Elza" e não "Elsa" seria um twist pomposo, uma reminiscência de uma época em que ainda era possível esse tipo de ingenuidade comercial. "Elza Soares" seria um rarefeito "nome artístico" de uma Elsa Soares criada no subúrbio de Engenho de Dentro. Uma história de sucesso perfeita e levemente anacrónica.

Contudo, usando o Google como meio para obter informação de fontes duvidosas, descobri num site brasileiro que as duas ortografias são equivalentes. Parece que tanto a Elza como a Elsa são virgens das águas, pessoas falantes, curiosas e criativas para quem nenhum obstáculo é grande demais. Ficam as duas deprimidas com facilidade mas superam as crises rapidamente. No lar são ambas excelentes mães e companheiras, com nomes que derivam do alemão, língua em que significariam originalmente "nobre virgem".

Isto é tudo razoável, mas lamentavelmente não há qualquer sobreposição entre o "zê" que eu queria místico e as nobres e simbióticas virgens. A Elza, nascida em 1937, fintou uma colagem criativa ao modernismo de um ZX Spectrum e assistiu, indiferente, à substituição do Citröen ZX, esgotando assim possíveis associações com as primeiras referências a marcas com "zês" que me vieram à cabeça. Na minha escassez de conhecimento, procurei "artismo", glamour e até uma alusão futurista por ter encontrado essa alegórica letra nas duas sílabas do nome Elza. Saiu-me na rifa uma nobre virgem. É caso para dizer que o futuro que eu quis imaginar socorrendo-me da minha limitada iconografia, para além de já não ser o que era, no caso da Elza Soares, nunca chegou a sê-lo.

18.2.05

(Diz que) O futuro já não é o que era

Qual papel?

Ao poucos começo a aperceber-me que toda a gente se repete. Vezes sem conta. De uma forma inconsciente. As mesmas histórias vão e voltam, num murmúrio constante. A pergunta é sempre a mesma: como é que se combate um inimigo que não conseguimos ver?

Uma cantilena

On a summer day, you can hear her call
But in a funny way, she reminds you of the fall

Mercury Rev - "In a funny way"

17.2.05

A angústia do analista antes do voto...

Eu sei que ele quer que o outro saiba que eu sei que ele disse que também sabe que nós sabemos que vós sabeis que eles mentem. Mas o que ele não sabe é que eu sei que eles perguntaram se vós não sabeis que nós sabemos que ele não fez o que tu sabes que eu comentei. Por isso, mais vale fingir que eu não sei que tu presumes que ele não quer que nós saibamos que vós não sabeis o que eles sabem, e votar como se eu soubesse que tu não sabes que ele finge que nós não sabemos que vós sabeis que eles não se calam. Por outro lado, há quem diga que eu só sei que nada sei.

Martírio

Como infractor regular, agraciado com alguma impunidade, posso dizer que o azar retira qualquer valor pedagógico à "cassação do título de condução". Também posso dizer que este conceito particular de azar só existe na cabeça de tipos como eu e que, talvez por isso, não tem grande correspondência moral (já para não dizer legal).

16.2.05

"Pi" ou o insulto gratuito...

Estava aqui a tentar escrever um post inteligente sobre o aspecto paradoxal de alguém usar "Pi" como diminutivo, mas isso exige uma erudição matemática que eu apenas pressinto. O que é certo é que sei de um tipo que tem esse original petit nom e "paradoxal" é provavelmente a única qualificação não ofensiva que eu consigo fazer relativamente a esse assunto.

15.2.05

Interrogação

Quando alguém olha para nós com um espelho como intermediário, isso é?

a) Uma fantasiada aproximação a um flirt com uma mulher potencialmente inatingível;
b) Alguém que não estava a olhar para nós, mas nós preferimos achar que sim;
c) Nós próprios a olhar para o espelho e a não acreditarmos na ausência de correlação entre a imagem mental que temos da nossa aparência e a realidade;
d) Um homem que não frequenta casas de banho públicas apenas por imperativos fisiológicos;
e) Uma vida insuportavelmente viscosa.

14.2.05

Despertar

Eu sei que um dia acordar cedo não vai ser doloroso, mas espero não estar em perfeita saúde (mental) quando isso acontecer. Pelo menos quero poder culpar alguém. O estado, os patrões, os comunas, deus, a idade, "isto", "eles", tanto se me dá. Não quero é ser responsabilizado por tão deprimente renúncia.

10.2.05

Sonho de um fim de tarde de inverno


Quando andei pela Bahia, fi-lo em condições pouco recomendáveis. Na altura, tentei ler muito e não me envolver em demasiadas imbecilidades, numa tentativa desesperada de não vender a alma ao diabo. No final deste dia de temperaturas a fazerem lembrar vagamente os vinte graus, já só consigo pensar precisamente em imbecilidade e palmeiras. Não é preciso muito para o verniz do elitismo-colado-com-cuspo estalar. Apesar de isso não ser desculpa para nada, a carne continua fraca.

9.2.05

Evolução

Com o passar dos anos, perdemos a paciência. Vamos fazendo uma limpeza étnica em modo trial & error, num processo de eliminação gradual de tudo o que não nos merece. Presumo que imediatamente antes de uma hipotética crise de meia-idade, atingimos a conclusão do extermínio: damos por nós com uma vida saneada, habitável, e apercebemo-nos de uma estranha paz que se instalou na paisagem. A partir daí inicia-se uma suave degradação, uma curva descendente marcada pela aniquilação involuntária de coisas que nos são caras, até que tudo acaba num dia em que acordarmos sem a tenacidade necessária para nos continuarmos a "vestir para ir à rua", mas vamos à rua na mesma.

Marcações

Só acordo verdadeiramente quando sinto o cheiro de outras pessoas. Não por ter hipersensibilidade olfactiva, mas porque só nessas circunstâncias me apercebo da existência do meu próprio cheiro. Eu sou isto porque não cheiro àquilo. Hoje de manhã o autocarro levou-me rapidamente os sonhos. Cheirava a gripe e a terceira idade.

4.2.05

A poética improvável

O luto veda fendas.

Luto (Do lat. lutu-, «barro»): substantivo masculino, massa ou substância aplicada para tapar fendas e, em técnica de preparações; executar a lutagem.

3.2.05

Moderação

Há uns anos, saía do escritório a horas perfeitamente civilizadas, quando fui surpreendido por um "queres fazer amor, chavalo?". É claro que por esta altura, a utilização do termo "chavalo" naquela frase delicodoce, já me deveria ter alertado para o facto da pessoa que me oferecia sexo poder não ser uma deusa mas, mesmo assim, virei-me com uma estúpida esperança de vislumbrar alguma decência carnal. Quem me esperava do outro lado era uma prostituta desdentada de cinquenta anos, forçada pela "crise" a trabalhar em horário de expediente. Há alturas na vida, em que mais do que bradar aos céus por alguma sorte no Euro Milhões, devíamos limitar-nos a reclamar um certo comedimento divino.

2.2.05

Fragmento


[...]
As pessoas pensam que eu escrevi a frase naquela data, mas não. Escrevi-a muito antes. Até lhe digo mais, a primeira vez que o fiz foi em 94.

Mas pintou a mensagem a 20 de Novembro de 2000?
Não. Pintei-a em 99. Passei pelo muro e reparei nuns gatafunhos que alguém lá tinha feito. Estive um bocado a olhar para eles para ver se percebia o que tinham escrito. O único que se consegui ler dizia "Vai pró caralho". Devia ser uma piadinha. Como aquelas que armadilhas escolares em que chamávamos alguém para lhe dizer "Chupa-mos!". Voltei lá passado três dias para pintar a minha frase e nunca mais me aproximei daquela parede.

Então a data não tem significado?
Pois. Não sei o que me deu. Deve ter sido uma coisa... como é que se diz? De fim de século. A revolução ia começar ali. O amor ao lado do vandalismo, uma treta desse género. Para dizer a verdade, começou e acabou ali.

Pode dizer-se que o seu mural é um embuste.
Sim, desse ponto de vista, pode. No fundo queria fazer uma coisa como aquele tipo francês... enfim, acho que era francês. Pelo menos era de um daqueles países onde falam francês. Aquele tipo que fez um quadro com um cachimbo e depois dizia que aquilo não era um cachimbo.

Magritte?
Pois. É capaz. Não percebo nada de arte.

Mas o que o Magritte queria transmitir com esse quadro era a ideia de que...
Olhe, não sei. Como lhe disse, não percebo nada disso. Eu nem sabia o que estava escrito no quadro. Tive de perguntar.

Se esse "amor" não passa de uma invenção, porquê Carina? Porquê esse nome ridículo?
Bem, todas as cartas de amor são ridículas, não é?

Pois. Mas existe uma Carina, ou não passou de um efeito cénico?
A Carina era uma cadela que vivia em casa do vizinho da senhora que me alugava um quarto, quando vim para Lisboa. Era lá para os lados da Artilharia Um. O tal vizinho tinha dois cães: a Carina e o Cambuta. O Cambuta era um pastor alemão. Mau como as cobras. Três meias voltas mordia a dona da casa onde eu vivia. Normalmente fazia-o quando ela ia às escadas de emergência estender a roupa. Aquilo às vezes era chato: a senhora já não era um bebé. Mas enfim, a Carina tinha um terço do tamanho do outro e não fazia mal a uma mosca. Acho que a única razão pela qual não abatiam o Cambuta era porque não queriam dar um desgosto à cadela. Daquelas coisas que se metem na cabeça das pessoas. O que é certo é que ela lá salvou o estupor do cão e eu, quando menos espero, dou por mim a pensar nela.

Parece-me que você, para além de ter umas referências culturais um pouco limitadas, não tem grande jeito para a ficção.
É capaz de ter razão. Sou um mentiroso descrente. Sabe que às vezes sinto a necessidade de fingir que estou sozinho. De andar por aí como se só eu vivesse no cinzento, enquanto o resto do mundo está no preto ou no branco. Mas a verdade é que não há amores falhados na minha vida, nem tragédias afins. Sou um tipo razoavelmente feliz e isso dá cabo de mim. Posso fingir ser um pensador, mas não o consigo fazer com convicção porque o que realmente me preocupa é o facto de passar demasiado tempo no banho.
[...]

1.2.05

Declaração de intenções

Não quero viver numa Lisboa sem horizonte. Quero-o escondido, mas próximo. Dissimulado na geometria das ruas, intermitente e anguloso. Quero continuar viver numa cidade onde rasgos de um céu que desfalece lentamente em direcção ao Tejo, nos esperam ao virar da esquina.