30.7.04

Postais de Lisboa

Descobri que em Lisboa existe uma Rua Capitão Roby. Apesar deste facto só por si já representar uma piada com alguma dignidade, há um elemento de celestialidade brejeira que esta informação isolada não revela, mas que catapulta o responsável por esta nomeação de incontestável mérito para os píncaros da hierarquia divina de qualquer tasca que se preze. A rua fica no coração da Picheleira.

Desconstrução

Cruel mundo este em que as nossas máscaras se desmoronam inevitavelmente a partir dos nossos sapatos.

Why stop time?


«Antonioni, too, made a great use of the Polaroid at the time, and I remember that during a reconaissance in Uzbekistan for a film that in the end we never made, he wanted to give three elderly Muslims a photograph he had taken of them. The eldest, after catching a brief glance at the image, gave it back to him, saying: "Why stop time?" We were left gaping in wonder, speechless at this extraordinary refusal.

Tarkovsky often reflected on the way time flies and this is precisely what he wanted: to stop it, even with these quick Polaroid shots.» 

«These images leave with us a mysterious and poetic sensation, the melancholy of seeing things for the last time.» 

[Tonino Guerra, Foreword: A fond farewell, Instant Light Tarkovsky Polaroids, p. 7 e p. 9]

Porquê parar o tempo? Para que as coisas que vemos pela última vez, não sejam as últimas que vemos.

29.7.04

Marcas

Passo por uma agência funerária onde é anunciado na montra que a gerência está a cargo de um Sr. Domingos Mega. À porta, vejo um homem nos seus setenta anos, a conversar alegremente. Talvez influenciado pela aparente exiguidade da loja, suponho que seja ele o Sr. Domingos Mega, forçado pelo Verão a abandonar o seu posto. 

Esta informação quanto à orgânica interna da funerária, leva-me a crer que em tempos terá sido um reputado cangalheiro. Ninguém diria. A olho nu, parece apenas um homem que discorre alegremente, em frente a uma loja tumular, há pelo menos trinta anos. Parece apenas um resíduo naufragado do passado.

Solilóquio

Não sei quem era o Carlos Paredes. Da sua vida, até há uns dias, apenas sabia, em segunda mão, que tocava magistralmente guitarra portuguesa e que estava internado num lar por trás da casa de um amigo. Não conheço a sua obra. Não sei quem é que ele deixou para trás. Talvez me aconteça o mesmo que aconteceu à Sara com o António Variações. Talvez o Carlos Paredes me morra daqui a uns anos.

Histerismo

Para além dos fogos, das praias do Algarve e do Jornal Nacional da TVI, nas próximas semanas, vamos ter em Portugal outro espectáculo nada bonito de se ver: os bilhetes para o concerto da Madonna estão à venda há dezanove minutos.

28.7.04

Naturalismo

Tenho o infeliz hábito de pensar de noite para tentar escrever durante o dia. Como todos os projectos desenhados na escuridão, também este se arrisca seriamente ao ridículo, fora do seu habitat.

Agora que tudo arde

Sinto dificuldade em juntar-me a "causas" que pouco devem ao egoísmo. Não estando intimamente preocupado com elas, o imperativo moral desmorona-se. O meu cinismo obriga-me sempre a questionar envolvimentos altruístas. Tenho uma franca relutância em comprar desígnios globais fundados na bondade do cidadão anónimo, especialmente quando o tal cidadão sou eu, que não sou bom, nem anónimo. 

Isto vem a propósito de quê? Do Sudão. Do genocídio. Da vaga de fundo blogosférica. Sendo um pulha insignificante, mantenho-me afastado, mas reencaminho para quem de direito. Afinal de contas, mesmo não almejando o céu, também não quero ir parar a Darfur.

27.7.04

Simbiose

Lisboa, seduz-me com conversa. Admito-o. No entanto, nos últimos dias esta situação tornou-se ridícula. Viver amantizado é uma coisa, sair de casa e voltar todos os dias com a cidade colada na pele é outra.

Cinematografias

O calor "brooklynizou" o meu bairro. Dos prédios escancarados, escorrem ecos de vidas que procuram temperaturas mais amenas. Das janelas desesperadamente abertas ouvem-se conversas sobre a segurança social e a influência do "sistema", reflexos inequívocos do delírio canicular. 

Na rua, um casal com idade para ter juízo, percorre repetidamente um trajecto ondulante, pontuado por turras apaixonadas. Um grupo derramado pelo passeio fuma charros em silêncio, na ausência de uma boca-de-incêndio arrombada que lhes pacifique as pulsões. Matilhas de cães vadios fazem a ronda das sombras.

Volto para casa e evito olhar pela janela. Mesmo não tendo uma Grace Kelly para incendiar a intriga, à falta de protecção policial, prefiro não saber o que se passa na ardência que povoa a vizinhança.

26.7.04

Film Noir

Há quem defenda a vida sem regras. O amor "livre". Eu, pelo contrário, sou a favor de regras. Quantas mais, melhor. Da vida, como do amor, apenas exijo subtileza.

Chiado

Na passada sexta-feira, num ímpeto flâneur, resolvi almoçar um homeopático gelado no Chiado. Enquanto procurava um lugar para estacionar, vi-me forçado a atravessar diversos cursos de gente, de profundidade incerta. Muitas vezes, foi-me difícil deixar de contemplar, aturdido, estes fenómenos naturais que se precipitam Rua Garrett abaixo. Rodeado de cavalos e de aço que estava, hesitei antes de me aventurar a atravessar aqueles deslizamentos de cosmopolitismo. Naquela zona da cidade, a selva manifesta-se esplendorosamente, entre um "chique Vogue" e um "plástico Wallpaper". Sem um jipe, ou um gin tónico, a vida torna-se penosa por aquelas paragens.

23.7.04

Anywhere out of the world

Não tenho por hábito desaparecer. Pelo menos não propositadamente. Cada vez que tento enveredar por essa via incerta, faço-o iludido quanto à dimensão desta cama a que chamam Lisboa. Faço-o acreditando piamente que para andar pela sombra nesta cidade, basta encontrar uma sombra. Invariavelmente, a sombra desloca-se mais habilmente que eu.

22.7.04

Escalas

Aqui há uns tempos estive para escrever um post que tinha por objectivo anunciar prosaicamente ao mundo a minha surpresa cada vez que um qualquer animal finge que me obedece. No entanto, convém relativizar. Há coisas que, mesmo estando incluídas na abrangência temática deste blog, não valem quatro ou cinco linhas tecladas. Mesmo porque afinal de contas, fico infinitamente mais surpreendido com a quantidade de gente que me vem aqui visitar à procura da Rita Salema nua.

Solidão

Experimentei fazer a World's Smallest Political Quiz. Posicionamento político para micro-ondas. O resultado foi "centrist" com pendor "libertarian". Um Guterres de direita, portanto. Com isto apercebo-me que, tristemente, nunca poderei dizer, num exuberante cavalheirismo, que concordo com alguém que está "nos meus antípodas" políticos, uma vez que esses antípodas não existem. Neste equilíbrio (ou indecisão), luto apenas contra mim próprio.

21.7.04

Esta noite

Usa-se "tonight" nas mais diversas canções arrebatadas. Quase sempre tem implícito (ou explícito) um "baby", que contracena com aquela única noite. "Esta noite", por oposição à "noite" pura e infinita, obriga a que tudo isto seja sussurrado ao ouvido da tal "miúda", num preâmbulo de proximidade. Infelizmente, estes ouvidos noctívagos através dos quais se precipitam corpos, raramente subsistem fora da lógica dos excessos. Evitavam que uma série de gente se sentisse na obrigação de ir passar férias ao Brasil.

A humildade que se esgota

Este rapaz, que tem por hábito deixar cadáveres bem escritos, à deriva na rede, já por diversas vezes louvou as qualidades (?) deste blog. Acho que seria importante não o fazer em muito mais ocasiões porque, sinceramente, começo a ficar sem capacidade criativa para não me repetir nos meus sinceros agradecimentos.

20.7.04

Excessos

De manhã visito os Terraços de Bragança, o quase polémico edifício do Siza Vieira, na R. do Alecrim. Discute-se a necessidade de rigor na arquitectura, a urgência da "vitória da virtude". Ao almoço, continuamos a debater aliterações. Na mesa do lado, o Machado de Assis é relembrado, por um pai acompanhado da respectiva filha, enquanto lêem poesia. No final da refeição, despeço-me dos meus interlocutores e fujo, expedito, deste centro histórico de Lisboa que exala cultura. Volto para a vidinha domada "dos negócios". Há misturas que não funcionam em horário de expediente.

19.7.04

Cegueira

Ainda não vi um único marciano que não esboçasse um sorriso, enquanto bloqueia um carro. Nas suas fardas "práticas", ao melhor estilo "americano que constrói a sua casa ao fim-de-semana", cercam os carros em transgressão, e riem-se sadicamente enquanto os prendem. Todos eles se deliciam com as possibilidades divinas que este poder de características duvidosas (do ponto de vista do bloqueado) lhes proporciona. Embriagados pelo moralismo da tarefa que lhes confiaram, deleitam-se no policiamento para jovens com a 4ª classe.
 
No entanto, o tal risinho não é provocado pelo carácter justiceiro do bloqueamento, mas sim pela implícita impunidade que a ele está associada. O escárnio municipalizado existe pelo facto de todos os marcianos saberem que as sentenças que aplicam aos lisboetas, nunca serão aplicadas a eles próprios. Sabem que o Tó da zona 15, que "conhece o pessoal todo", os deixa estacionar de borla, em Lisboa. 
 
É por estas e por outras, que o pequeno poder (ou o poder em geral) nunca deveria ser entregue a pessoas comuns: esquecem-se facilmente que podem sempre apanhar umas boas estaladas.

16.7.04

Networking

Para reforçar a nossa fé católica e testar verdadeiramente os ensinamentos do Senhor bastava que, durante a missa, em vez de beijos e abraços entre crentes, se trocassem cartões de visita.

Consumismo

Fui ao Continente à procura de coisas que não precisava, a preços baratos. Saí de lá com artigos que vim a descobrir serem importantes, a preços ridículos: Chico Buarque e Jacques Brel. O compromisso entre consumismo e arte que possibilitou este episódio aparentemente paradoxal, materializou-se sob a forma da antologia, formato que como se sabe, tem tantas hipóteses de retratar convenientemente a obra de um qualquer artista, como de o Sporting ganhar o campeonato esta época. 
 
No entanto, numa vida de mediocridade cultural, enquanto não arranjo maneira de decorar os sonetos de Petrarca na fila para a Costa da Caparica ao domingo, vou-me ficando por ser um ignorante que se pode levar a festas, mas a quem não se pode pedir para discursar, em vez de me limitar a ser um ignorante que só se pode levar ao futebol e para longe da bancada central.

15.7.04

Nocturnos

Não consigo ser regular. Não há iogurte ou papa integral que salve este espaço quando as noites lisboetas voltaram à sua espessura costumeira. Quando os movimentos recuperaram a sua indolência subaquática e a vertigem transgressora regressou, juntamente com a dificuldade em manter uma certa estanquicidade ontológica. A disciplina das letras não se coaduna com esta existência liquefeita. A inimputabilidade abateu-se sobre mim. Com alguma sorte, só recupero a clarividência lá para Outubro.

14.7.04

Warp Speed


As horas do meu dia precipitam-se. O blog, apoiado em muletas, prossegue a sua marcha. Eu, mesmo sem blog, tento desesperadamente não derreter.

13.7.04

Receita

Em viagem é importante cumprir um orçamento, mas nunca, em circunstância alguma, poupar dinheiro.

Dúvida

De que falamos, quando não falamos de chacha?

12.7.04

E ao sétimo mês...

Dois dias em Cabanas, com amigos. No Domingo à noite, dirigimo-nos, resignados e carregando sacos de viagem, em direcção aos carros, banhados por uma brisa a 28 graus. Alguém, ao ver a nossa derrotada marcha, diz: «Coitados, já se acabaram as férias».

Sorrimos uns para os outros, ao pensarmos nas tais férias que ainda estão longe de começar, ao pensarmos que umas semanas à deriva no aromático Sri Lanka ainda se atravessam esplendorosamente no nosso futuro próximo e não foram demolidas por palpites alheios em noites cálidas.

Para nós, o Algarve em Julho está oficialmente morto. Aquele comentário anónimo foi algo entre um prego no caixão e uma missa do sétimo dia. O "Julho" da nossa adolescência tornou-se num Julho ordinal, num Julho sanguíneo apenas em dias inúteis, numa pontuação a caminho do deleite tropical, aliás, como todos os outros meses deste verão que vivemos aos semestres.

Alguns comentários depois da bomba atómica

- A julgar pelas reacções feridas da esquerda (e particularmente do PS), fico com a ideia de que não se pode acusar o Sampaio de falta de coragem. Quando um grupo de pessoas que pretendia governar o país vem para a televisão, gritar despudoradamente que "a democracia pode estar em causa" porque o seu "amigo pessoal" os desiludiu, começo a pensar que afinal a decisão tomada pelo presidente foi bem mais intrépida e acertada do que à primeira vista parecia.

- O PS só agora começou a perceber que o melhor favor que o Sampaio lhes (nos) fez foi precisamente livrá-los desta histérica, teatral e inconsequente liderança. Pode ser que agora comecem a fazer oposição convenientemente, sem serem rebocados pelos pantomineiros do Bloco. O país agradece.

- Santana vende-nos, na SIC, a mudança de ministérios e/ou secretarias de estado para fora de Lisboa. Vende-nos o e-government. Ainda nem formou governo e já somos ameaçados com as tais «políticas espectaculares, pouco consistentes e normalmente caras» de que falava Pacheco Pereira?

- Apesar de tudo, fico feliz por ter a oportunidade de mudar as coisas daqui a dois anos, se for necessário. Só espero que, se for esse o caso, não venha a ser tarde demais.

- Douala? Mas que brincadeira vem a ser esta?

9.7.04

Nomeações

Pensava ontem, enquanto via o excelente "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" na evolução do esquecimento, retratada pela diversidade de nomes que usamos ao longo da vida. Lembrava-me dos telefonemas para casa de namoradas adolescentes, em que me via forçado a lutar contra a seriedade distanciada da pessoa que fosse sorteada para atender a minha chamada, apenas com um frágil nome próprio, até chegar à voz que queria ouvir. Uma voz que, talvez graças à preciosidade do inocente amor daqueles anos, me reconhecia imediatamente, assim que ouvia as duas sílabas que me identificavam.

Mais tarde, amadurecidos, calejados pela vida, juntamos um ou dois apelidos. Aceitamos tristemente que num universo alargado de contactos, os Josés, os Nunos, os Pedros, e afins, se multiplicam e que a perda de inocência acarreta uma banalização da nossa própria identidade. Juntamos dados para combater o anonimato, para percorrer o vazio que nos separa uns dos outros, na esperança de um dia voltarmos a ser apenas um nome próprio.

8.7.04

Díptico do retorno a casa (actualizado)



Tenho uma relação amor/inépcia com a fotografia. Às vezes chego a pensar que tenho ideias sobre o tema. Opiniões. Mas a qualidade acidental das minhas capturas digitais, assassina qualquer pretensão. Gostava de conseguir retratar a cidade à noite, na sua vertente labirinto de luz, mas há um vida diurna que não o permite. Limito-me à poética para amadores, perdendo-me esporadicamente em ruas abandonadas pela humanidade, imersas no silêncio demasiado localizado da urbe e catalogando mentalmente pontos de fuga, sombras refugiadas, geometrias difusas. Às vezes fotografo. Outras vezes deixo-os partir.

Aniversário

Este senhor, e o seu «registo intelecto-rulote-de-bifanas», passeiam-se pela blogoesfera há um ano. Sendo um dos meus registos preferidos, aproveito a ocasião para sugerir a visita. Entre muitas outras preciosidades, poderão encontrar por aquelas bandas, o burlesco Colectivo Dijais Não Basta Sermos Bonitos Temos Que Ser Duros!, o que só por si já justifica a deslocação.

7.7.04

Dúvida

Fantasiar com Santanettes é uma parafilia ou é populismo?

F(r)ases feitas

«Those who meet experience, learn to live; those who don't, write.»
Norman Mailer, The Spooky Art.

Julgando pela dificuldade que tenho encontrado em escrever, poderia presumir que tive um encontro arrebatador com a vida. Infelizmente, embalsamado, não consegui detectá-lo.

6.7.04

Alheado

Desde domingo que Portugal me irrita. Este Portugal ridículo, que ralha. O silêncio em que vi os jogadores portugueses abatidos no relvado devia-se ter prolongado. O país devia ter continuado durante mais uns dias sem saber o que pensar, perdido algures entre o destino trágico e a glória comprada em planta. Exactamente no sítio onde o Sampaio tem andado desde há uma semana.

2.7.04

Segunda-feira

Este blog necessita urgentemente de pacificação. Não consigo viver no presente.

A final em comentários fáceis...

A Grécia? Mas porquê a Grécia? Porquê o Boavista das selecções europeias? Só percebo esta combinação astral pelo potencial épico deste jogo. O fado luso contra a tragédia grega. Deve ser difícil montar uma final com duas equipas/nações que tenham maior tendência histórica para o sempre espectacular going down in flames.

Apesar de estar convencido que vai ser um jogo repugnante, e que podemos perfeitamente seguir a mesma via dos checos, estou muito mais incomodado com o facto de termos que levar com uns bárbaros parecidos conosco até ao fim do campeonato, e não com o plácido exotismo da europa do leste.

Freud explica

Agora que o Pacheco Pereira e demais (psic)analistas começaram "corajosamente" (?) a explicar aos portugueses porque é que nós não gostamos do Santana, talvez nem a prodigiosa competência populista do homem o salve nas urnas, poupando-nos a um governo de coligação do PS com outros populistas perigosos: o Bloco de Esquerda. Se é para fazer pré-campanha, que ponham o homem de rastos, não se limitem a fazê-lo perder as eleições. O PS terá que as ganhar.

Equilíbrio

Abandonando os exercícios de matemática para leigos do post anterior, no caso de eleições antecipadas, fica a ideia de que não havendo contra quem votar (o Zé Manel está em Bruxelas e aparentemente a Ferreira Leite já não está nas Finanças), e sendo o Ferro tão ou mais duvidoso como líder da oposição do que o Santana como Primeiro Ministro (ou vice-versa), não é certo o desfecho dessas mesmas eleições. Aparentemente as debilidades dos dois hipotéticos candidatos anulam-se.

Se o objectivo de dissolver o parlamento é devolver legitimidade ao governo, independentemente da sua cor partidária, parece-me que corremos o risco disso acontecer em situação de equilíbrio de forças, o que se poderia traduzir em quatro anos de marasmo até nos fartarmos de novo das pessoas que elegemos. É certo que não fazer nada é melhor do que fazer mal mas, por outro lado, acho difícil que as coisas piorem. Neste contexto, não sei se não preferia ter a hipótese de mudar de governo daqui a dois anos. Venha Santanás e escolha. Obrigado José Manuel Barroso.

Votar no homem

Diz-se por aí, como que as pessoas votem em homens e não em partidos. Assumindo que ninguém quer com isto dizer que se os manos Portas trocassem de partido, também os seus eleitores trocariam de quadrado no boletim de voto, parece-me que mesmo a versão intra-partidária não é particularmente sustentável.

Numas eleições em que se votou claramente contra um homem (Cavaco) e a favor de outro (Guterres), como foram as de 1995, a transferência de votos entre o PS e o PSD rondou os 15%. Já nas últimas eleições, em que as pessoas não chegaram a votar a favor de alguém, apenas contra o Guterres, essa transferência ficou-se pelos 7% aproximadamente. Considerando que será esse o valor de um bom candidato, ou de um mau opositor, fica aquém da tal noção de que a "maioria das pessoas" vota em líderes, e não em ideias que se confundem com as dos partidos que os elegem para esse cargo.

A "maioria das pessoas" está mais preocupada com as prestações da casa do que com o que o Pacheco Pereira diz, pelo que, se tudo falhar (leia-se se todas as alternativas forem más), votam em quem sempre votaram.

1.7.04

Superstições

As superstições futebolísticas compensam em misticismo a nossa incapacidade de intervenção nos jogos. Apropriamo-nos de hábitos que caiem do céu, inventamos um historial afortunado e cumprimos dedicadamente a recém-gerada tradição, numa sofrida contribuição para a vitória. Não há necessidade de recorrer à relevância estatística. Basta que as coisas tenham "funcionado" pelo menos uma vez para se tornarem vitais no momento em que o Figo vai marcar o livre.

Procuramos, com fervor, recriar até ao mais ínfimo pormenor todo o cenário dos momentos de glória passados, de modo a evitarmos que o tal bater de asas de uma borboleta que pode dar origem a um tornado, tenha origem na nossa sala. Usamos a mesma roupa do jogo anterior, vamos assistir aos desafios nos mesmos sítios, respiramos da mesma maneira, expulsamos das nossas imediações o amigo que em 1991 viu conosco um Sporting-Farense que acabou empatado, porque pode dar azar. Neste ambiente esterilizado nasce a fé.

Regra geral, não temos necessidade de recorrer a longas séries de rituais, uma vez que a falta de consistência deste elo entre o povo e os jogadores, trata de nos conduzir mais frequentemente do que gostaríamos à derrota. No entanto, há momentos históricos em que estes maneirismos xamânicos são postos à prova. Momentos como os que vivemos actualmente, em que a selecção ganha jogos demais para a estrutura filigrânica destas crenças caseiras. Momentos em que o equilíbrio precário do excesso de peças que compõem o puzzle da magnificência futebolística se desmorona quando alguém, inocentemente, nos lava a camisa que andámos a mastigar e a rasgar em frente à televisão desde que começámos a ganhar.

Aí a religião entra em confronto com a ciência. Dá-se o curto-circuito. Será que, limpa, a camisa, ainda é a camisa que carregou às costas a equipa? Será que sem semanas de acumulação de "sangue, suor e lágrimas" no trapo que vestimos, conseguimos vencer o Europeu? A dúvida corrói-nos. A fé esvai-se e o tremor desenfreado instala-se.

Aos onze que estão em campo ainda lhes pagam umas centenas de milhares de euros para aguentar o frágil edifício da crença na vitória. Para o décimo segundo jogador, não há salvação. Nada suporta esta transcendência de trazer por casa, para além da sua capacidade de auto-regeneração, quase instantânea, onde acessórios bafejados pelo esplendor do triunfo vão sendo paridos pela revianga e não pelo nosso voodoo em tons de verde e rubro. Nessa altura, mergulhados na solidão, torna-se evidente que não passamos de agentes esquecidos do fado, uma peça insignificante da engrenagem da sorte, onde o máximo que podemos fazer é, passivamente, evitar emperrar a máquina.