30.4.04

Muros

O túnel das Amoreiras transformou-se numa espécie de muro de Berlim, sem cargas ideológicas, mas igualmente da responsabilidade de um bando de pantomineiros. Passando grande parte do meu dia na zona de influência da dita obra, tornou-se habitual usar termos como "o lado de lá" para descrever a zona a Sul da ferida aberta.

É certo que tendo que atravessar para o outro lado algumas vezes por dia, a carga demoníaca das minhas deslocações de carro aumentou consideravelmente. No entanto, esta fronteira física veio conferir uma carga encantatória aos territórios que se encontram para lá do caos. Saio à rua e sinto uma espécie de chamamento, um dever patriótico de me lançar à descoberta de novas paisagens urbanas e dou por mim, vezes demais, a rondar o bicho, a tentar navegá-lo. Bebendo directamente da dimensão épica da portugalidade, o túnel acabou por tornar-se um buraco negro que suga lisboetas que "marcham contra os canhões, sobre a terra e sobre o mar", como lemmings.

29.4.04

Escolhas

Quando escolhemos um cão tentamos evitar certas raças onde, "diz que", um instinto animal indomável poderá subsistir. Já todos ouvimos histórias sobre cães que "enlouquecem" e se viram contra os donos, e tentamos evitar a antecipada dentada. Já com os filhos, temos a certeza que eles nos vão abocanhar mais cedo ou mais tarde, mas "compramos" de bom grado um desses trambolhos, aguardando serenamente pelo flagelo futuro.

No caso dos animais, tentamos convictamente contrariar a sua ferocidade inata, apesar de a reconhecermos à partida como impossível de anular. Na procriação, damos provas de uma tolerância ilimitada, aceitando, resignados, os sintomas da herança genética que propagámos e a sua transcendente fatalidade. Há alturas na vida, em que não temos outro remédio senão refugiarmo-nos num destino conceptual para lidarmos com momentos de tragédia.

Retornar

Ontem, pela primeira vez, não houve actualizações do blog em dias úteis. Confesso que senti alguns remorsos, mas o "serviço" tem estado no meu encalço. Hoje, passei por aqui para ver em que param as modas e dei com um sitemeter em plena taquicardia. Fui investigar a causa desta estranha condição e descobri que a desassossegada Sara resolveu desmentir a minha extemporânea mas glamorosa autópsia. Dei-a como morta e ela irrompe pela minha porta, levando tudo à sua frente. Há males que vêm por bem, afinal de contas.

Quanto aos comentários do post, cara Sara, não é necessário recorrer ao Freud, o Fernando Lopes (ou o post que eu escrevi sobre o seu miserável "Lá Fora") dá conta do recado.

27.4.04

Em busca do conhecimento

Será que existe uma regra de três complicada? Ou a simples é filha única? Navego nas ondas de choque das modas lançadas por esta senhora...

Sobrevivência

Na semana passada, ao entrar no meu quarto e ver na contra-luz um pequeno "cardume" de moscas que voava em círculos concêntricos, fui de novo relembrado que é nestas pequenas coisas que se vê a admirável capacidade de sobrevivência dos insectos. Estas moscas que agora me enervavam, tinham "desabrochado para a vida" às primeiras horas de calor, demonstrando a sua excepcional capacidade de adaptação a condições adversas. O meu quarto tinha-se tornado numa espécie de embalagem para insectos instantâneos: bastou juntar uns raios de Sol para obter um grupo esvoaçante de pontos negros com asas.

O português, nesse aspecto, também poderia ser considerado um insecto da humanidade. Não tanto pela parasitagem em que muitas vezes vive, ou pelo seu incontrolável desperdício de criatividade, mas pela extraordinária flexibilidade que lhe permite cumprir o seu desígnio divino, assim que há o mínimo de condições para tal: sempre que a temperatura passa dos 17 graus, invade a praia. É nestas alturas que compreendo que não há razões para temer pelo futuro. Parafraseando o Michael Porter, que sendo um guru da gestão percebeu estas coisas muito antes de nós, se tudo falhar, em Portugal, vamos sempre ter o Sol e a praia e isso poderá ser o que, em última análise, nos irá salvar de nós próprios.

26.4.04

Rankings

O Technorati chamou-me a atenção para o facto deste senhor me ter colocado em vigésimo lugar da sua lista de blogs favoritos. À partida, um vigésimo lugar num universo de milhares de blogs quase merece, só por si, uma lágrima no canto do olho. No entanto, fiquei verdadeiramente satisfeito depois de ver o vigésimo lugar de outra lista que o rapaz compila. Saber que o Cafageste acha que o "Classe Média" está para o resto da blogoesfera, como a Michelle está para o resto das mulheres é, sem dúvida, motivo de orgulho.

23.4.04

La vida loca

Hoje almocei à beira-rio, sozinho com o meu DNA, ao som de um italiano qualquer que gostava de ser o Tom Waits, e tocava uma espécie de folk melancólico e burlesco, carregado por um acordeão. À minha volta, uma série de pessoas que "vivem a vida", vestindo uns óculos escuros, um corpo bronzeado e um grupo demasiado extenso de amigos, como se fosse uma armadura. Percebo que a ameaça de uma vida que não possa ser vivida os assuste, e que eles queiram a todo o custo defender-se dela. Afinal de contas, o imobilismo deixa-nos a sós com um "eu" silencioso que se limita a olhar-nos nos olhos. Não há fatos da Carolina Herrera ou barcos em Vilamoura que nos salvem neste confronto e isso é, no mínimo, "coisa de pobre".

Memória sentimental

dez anos, em plena adolescência e no auge do meu sentimentalismo grunge, lembro-me de me ter fardado, seguindo religiosamente os ditames do movimento (cheguei a pedir umas Doc Marten's emprestadas), e de ir solenemente para o concerto dos Nirvana no Dramático de Cascais. Algures a meio do concerto, estava eu alegremente a ser pontapeado e empurrado em pleno mosh pit, lembro-me distintamente de ter pensado, enquanto me atirava para cima de um grupo de inocentes espectadores, que a vida a partir daquele momento só poderia, na melhor das hipóteses, oferecer-me momentos de igual felicidade. Curiosamente, não tendo tido até hoje um AVC, parece que isso se tem vindo a verificar.

Acho que o grunge, sendo uma mistela de política, romantismo urbano, e moda, se adequava perfeitamente à minha trémula e sonhadora pós-puberdade. O que é certo é que, obrigando-me a uma reflexão desnorteada sobre as limitações adolescentes, me educou para a melancolia e, em certa medida, para o amor. Talvez por isso, ainda hoje sinto gratidão pelo que aqueles tipos desgrenhados cantavam na altura, consumidos por uma qualquer desiludisão. No fundo, trouxeram-me a "Geração X" antes de eu ter que a viver.

Enfim, tudo isto para explicar como é que, apesar de ter passado grande parte destes dez anos a ouvir sobretudo coisas na esfera da dita música "electrónica" ou "de dança", ainda consigo gostar muito dos Strokes. Na minha mediania, continuo a achar que só se pode dançar seriamente ao som de um rock arrebatado.

Mudanças

Descobri que o meu bisavô, por volta do início do século, tinha um entreposto comercial no Pará, onde acabou por morrer. Aparentemente, nessa altura, o Pará ainda vivia «um período fausto e próspero, proporcionado pela exploração da borracha, que se estendeu, até as primeiras décadas do século XX, época em que o dinheiro fácil dava à cidade de Belém, capital do Pará, ares de metrópole europeia, pois estava mais próxima de Paris do que da capital da República, a cidade do Rio de Janeiro».

Deste passado, só chegaram a mim nomes como Araci, Juraci e outros (primos direitos da minha avó que ficaram por lá), o cheiro de um sabonete que sempre existiu em casa da minha avó mas que eu nunca soube que vinha do outro lado do Atlântico, e alguns relatos da vida em dois continentes, à procura da prosperidade. É curioso como em cem anos o Brasil passou de uma terra de sonhos para um Algarve sonhado. No Pará, do sonho do meu bisavô em particular, talvez só restem os casarões da época dos borracheiros, a arquitectura colonial, e cidades como Viseu, Bragança, Santarém, Alenquer ou Óbidos, que se vão perdendo à medida que penetramos na selva amazónica e estes nomes são substituídos por nomes nativos.

Estrela cadente

Será esta a versão blogoesférica da morte aos 27 anos da estrela do pop/rock, por overdose, no auge da sua fama?

22.4.04

Vazio

O dia tem-se desenvolvido no vazio. Deve ser a isto que chamam "o serviço". Sinto que a classe média me chegou aos ossos. À noite, a situação não deverá melhorar. Daqui a pouco vou meter-me no carro, mergulhar no trânsito e pensar na falta que me faz um dicionário online onde fosse possível procurar palavras pela sua definição. Se for muito difícil chegar a casa, talvez vá gastar dinheiro para ajudar a retoma que aí vem. Nestes dias parece que acompanhamos o declínio do Sol, o gradual arruinar da luz, até um desvanecimento final, altura em que a música se cala por umas horas até uma nova entrada em cena.

21.4.04

Escolher a dedo

Vi na segunda-feira, no DN, que também o Paulo Sá e Cunha, advogado do putativo pedófilo Manuel Abrantes, tem uma assistente loira, com uma ar saudável e transbordante de "executivismo". Já o rapazinho que defende o Bibi desencantou uma colega para o ajudar na sua ingrata tarefa que, por alguma razão, faz pensar que também ele merece (alguém que use) L'Oréal.

Cada vez mais me parece que há outra batalha a decorrer neste processo, para além da legal, e que se trava a um nível subliminar. Inconscientemente o público poderá duvidar do mais estrito profissionalismo destes ilustres advogados, detectando-lhes no corte de cabelo, nos fatos, ou mesmo no timbre de voz, sintomas subtis de pedofilia associados a um convívio promíscuo com os seus clientes. A isto estes senhores respondem com os semblantes graciosos das suas colegas de escritório, implantando no imaginário colectivo a ideia de que não poderão ser pedófilos já que preferem sexo em horário de expediente. Estas jovens afinal de contas não passam de um antídoto para a peçonha da assistência.

Escanção

Por alguma razão, os cães demoram sempre mais tempo do que me parece necessário para interpretar a mensagem cifrada contida nas marcas deixadas pelos outros cães. Fico com a ideia que, como se de um vinho refinado ou de um perfume delicado se tratasse, as emanações de excreções caninas adquirem uma certa patine etérea à medida que vão secando num qualquer poste de electricidade, ao sabor dos elementos. Por outro lado, talvez a hipotética complexidade sensorial destas "assinaturas" seja apenas mais forma de personificar a espécie, de a tornar menos selvagem, mais civilizada e digna do exigente estatuto de "amiga do Homem".

Dúvida cine-sentimental

Se o "Lost in Translation" pode ser considerado um "Before Sunrise" para adultos, o que fazer, nove anos depois, do dito filme também ele já entrado na maioridade?

20.4.04

Solidão etilizada

Quando andamos aos caídos, depois de momentos de intimidade com umas caipirinhas e umas Absoluts, há sempre demasiadas coisas para dizer. A embriaguez que nos empastela o cérebro, e que paralelamente funciona como um processo de depuração existencial, desenvolve em nós um impulso conversatório aparentemente incontrolável. A angústia da solidão instala-se e somos dominados pela obsessão relacional.

Geopolítica

Assumindo que, no que diz respeito ao Iraque, o que é importante nesta altura é que alguém escreva direito mesmo que seja por linhas tortas, fiquei algo melindrado por saber que quem anda a fazer o papel de Deus por aquelas bandas, para além dos EUA e o RU, é um grupelho de nações sui generis. Parece que os nossos homens da GNR andam muito bem acompanhados por soldados da Mongólia, República Dominicana, Filipinas, Azerbeijão, entre diversos outros reputados democratizadores, com contingentes semelhantes (em alguns casos maiores) aos nossos.

Tendo algumas dúvidas que países com esta relevância geopolítica tenham algo de particularmente relevante a ganhar por acompanharem o G8 parcial que avançou para esta coligação, confesso que fiquei algo desiludido ao ver esta lista (mesmo desactualizada). Às vezes dar um passo atrás permite-nos ver que as nossas valorosas e peregrinas iniciativas, de determinados ângulos, não parecem mais do que uma vassalagem, ou na melhor das hipóteses, do que diplomacia com resultados práticos de interesse duvidoso para Portugal.

19.4.04

(Outra vez) lá fora

Ontem, apesar de já ter sido avisado para não o fazer, fui ver o filme do Fernando Lopes. Como já o tinha dito antes, desconfio de pessoas que falam como pensam. Neste caso, de argumentistas que põem outras pessoas a falar como eles pensam. Dos filmes que me lembro de ter visto, acho que o pretensiosismo intelectualizante deste "Lá fora" só foi ultrapassado pelo "Après la reconciliation" da mulher do Godard, mas nesse fui mesmo forçado a sair a meio. O João Lopes criou um argumento à sua imagem, pelo menos à sua imagem pública, onde os personagens, na sua angústia, nada mais fazem do que "armar ao cagalhão" (perdoem-me a vulgaridade).

Por outro lado, a performance dos actores é quase ridícula, de tão teatral, mas admito que talvez fosse a única forma de representarem o que o crítico de cinema lhes escreveu. É curioso ver que os vislumbres de "mundo real" que se podem detectar no filme, esses sim, são verdadeiramente ridículos, como se uma saída do acidentado caminho da metafísica, só pudesse acabar em desgraça. Gostei particularmente da inacreditável faceta do Rogério Samora como corretor de bolsa, onde ele diz a certa altura uma coisa deste género, ao telemóvel: «Compra. Então vende. É essa a nossa estratégia neste momento. Não te esqueças de ver os índices de Nova York e de Tóquio». Mas o que é isto? Pop art? No meio de tanta fanfarronice, só mesmo o Miguel Guilherme aparece como último reduto da naturalidade. Talvez o hábil argumentista o tenha poupado (ou esquecido) pela pequenez do seu papel.

Sobre a cinematografia da coisa, aconselho opiniões de gente mais qualificada do que eu, mas na minha humilde opinião, arrisco-me a afirmar que o filme é uma bela trampa.

16.4.04

Anabelamotaribeirismo do dia

Hoje, acho que vou à procura da alegria perdida do pop-rock, na noite de Lisboa. Há dias (noites) em que gostava voltar aos anos 1987-1993 e a rubrica "Pop Pop and Away!" do Incógnito parece-me um bom sítio para o fazer.

Espanto matinal

Algo de estranho se passa na minha vida. Ando a ver cada vez mais mulheres parecidas com a Yokas do "Third Watch". Não consigo perceber se as mulheres portuguesas se metamorfosearam de repente, ou se o problema requer psicanálise. De qualquer maneira, sempre é melhor do que aquela cena no "Being John Malkovich" em que toda a gente é igual ao dito. Entre uma alucinação com uma loira matulona e uma com um careca assustador, que venha a da loira matulona.

15.4.04

A fraternidade na rua

Estou parado, com uma quantidade significativa de concidadãos, à espera que o sinal passe para verde para atravessar a rua. Do outro lado, no meio de um outro grupo alargado de gente que espera o mesmo que eu, está uma família de três elementos, dois pais e uma filha. O sinal dá-nos guia de marcha. A família dá as mãos, forma uma muralha e avança alegremente. Aproximam-se de mim, sorridentes. Apercebo-me que não vou conseguir quebrar aquele elo, nem contorná-lo, e que me arrisco a ser atropelado por um amor de pai e outro de mãe. O confronto parece inevitável. Mas não, no último segundo, a mãe e a filha, depois de me olharem fixamente tentando intimidar-me com a sua proximidade afectiva, soltam-se, deixando-me arrombar o agregado familiar. Neste mundo cão, somos forçados a seguir a lógica do "um contra todos e todos contra um", especialmente porque numa rua atarefada, não há espaço (físico) para entidades plurais.

Gainsbourg luso

Se pegarmos no Gainsbourg, lhe juntarmos uma pitada de apresentabilidade facial, uns laivos frugalidade estética, e um toque de poética lusa, temos o Jorge Palma. Ao estilo P(rova) G(eral) de A(cesso), o Gainsbourg está para o Jorge Palma, como Paris está para Lisboa.

Do contra

Ao sair dos Armazéns do Chiado, quase tropeço num jovem que está sentado em frente da saída do centro comercial, na beira do passeio, lendo numa desengonçada descontracção o "La Vanguardia". Realmente, dificilmente me lembraria de algo mais "à frente" do que o imobilismo transgressor deste rapaz. Espraiado com o seu jornal, torna-se um obstáculo para o pensamento seguidista de dezenas de pessoas que percorrem o trilho da sua transumância entre o escritório e casa, com uma paragem na FNAC. Movimentando-se da cadeira para o chão, este rapaz proporciona a todos os que tropeçam nele uma visão fugaz de um mundo diferente, onde somos todos livres, não tendo que seguir ordens, nem usar fardas, nem viver de uma forma rotineira. Confesso que levei algumas horas a perceber o alcance deste gesto. A minha primeira vontade foi de me voltar para trás e de gritar algo de tradicionalista como: «Vai trabalhar, malandro!».

14.4.04

Areia na engrenagem

Uma semana de férias, seguida de um fim-de-semana prolongado é a melhor receita para a improdutividade, para o bloqueio mental. Também no rescaldo de dias de descanso se podia aplicar a célebre regra que diz que para não se ter ressaca o melhor remédio é continuar a beber. Estou a precisar de uma cerveja para conseguir fazer a transição para a realidade.

Lá fora

Uma cigana desce a Rua Castilho com o marido/companheiro. Enquanto percorre o seu caminho vai aproveitando os semáforos vermelhos para ir pedindo esmolas à janela dos carros parados. A forma indolente como encarava a aparente miséria em que vive, aliada a uma certa imagem de espiritualidade e solidez da cultura cigana, fez-me pensar que se confirma nestas pequenas coisas que este povo vive fora do (nosso) mundo, com regras e necessidades diferentes, começando por uma hipotética indiferença relativamente ao dinheiro. Vendo-os no seu dia-a-dia, podia mesmo pensar-se que, eles sim, vivem do ar.

Unanimidade

Muitas vezes, a existência de unanimismo em torno de um qualquer tema é o primeiro motivo para desconfiar desse mesmo tema. Mesmo que se trate do "W. Bush" (como lhe chamou o Pedro Mourinho na SIC Notícias).

Animalidade

Um bébé dá-nos a hipótese de desempenharmos o papel de Deus no nosso microcosmo, tentando criar alguém à nossa imagem, alguém de extremamente complexo e potencialmente "melhor" do que nós próprios, um desdobramento. É um investimento de alto risco, uma vez que o aparecimento de uma criança é algo de fracturante: assassina-nos uma parte das nossas vidas, sem nada que se pareça com uma componente de capital garantido. Se tudo correr pelo melhor, torna-se independente ao fim de uns anos, deixando-nos com as cicatrizes da aprendizagem e eventualmente uma residência assistida. No entanto, até chegar à fala e a caminhar, fica-se por uma existência quase canídea, limitando-se a distinguir-se de um cão pelo seu potencial e pela inexistência da gratidão instintiva e manipuladora, que é substituída na sua função por um corpinho viçoso.

13.4.04

Coisas que fazem sentido

Apercebo-me, deitado na praia, que o céu é o enquadramento perfeito para quem amamos.

Fantasia

Apesar de todos os seus defeitos, os Estados Unidos, como criação global, demonstram uma riqueza sociológica essencial ao nosso próprio estudo. A sua presença intrusiva obriga-nos a uma reflexão permanente sobre nós próprios, sobre o mundo, etc. Os EUA tornaram-se um aquário gigante, em equilíbrio precário, que vai transbordando periodicamente, devido aos desequilíbrios momentâneos causados pelas pancadas que o resto do mundo dá no vidro, e por agitações internas devidas a uma inconciliável multiplicidade de espécies que nadam naquele espaço reduzido. "Can't live with them, and can't live without them".

12.4.04

Notas Nordestinas IV: Salvador da Bahia

Em Salvador, deparei-me com um problema: a ignorância histórica. Em Lisboa, lido bem com ela porque tenho outras coisas para me distrair. Lá, não posso escapar ao frente a frente. Na parte moderna de Salvador, com os seus prédios corrompidos pela humidade tropical e os bairros de características favelosas, consigo interpretar o que me rodeia. No centro histórico, percebo o que estou a ver (até porque é fácil estabelecer paralelismos com Lisboa), mas não conheço convenientemente as suas origens. Senti-me agrilhoado pela mediania e apercebi-me que este é um dos problemas do turismo pré-fabricado: não requer pesquisa, não requer um "Lonely Planet" orientador, limitamo-nos a aterrar noutra cultura, sem qualquer tipo de preparação específica, sem qualquer estimulante adicional para a curiosidade. O que visitamos esgota-se muitas vezes no que está à vista. De qualquer forma, tentei fazer o que podia para apreciar o local e mesmo só estando lá algumas horas, é fácil perceber o porquê daquela canção do Baden Powell que diz que o samba «nasceu lá na Bahia» e que é «negro demais no coração». A cidade transpira tropicalismo.

Talvez por isso se explique a afluência de um viajante muito particular: o jovem sujo. Para além do turista "hard-core" de calções, ténis, chapéu na cabeça, máquina fotográfica ao pescoço e escaldão nos braços, vêem-se nas ruas da cidade múltiplos elementos deste nicho de mercado, sendo fácil imaginar que o que os levou até lá foi uma descrição de Salvador, num qualquer guia de viagem, como sendo "laid back" e "atmospheric". Para este público-alvo, estas qualificações significam sítios baratos para dormir, autenticidade, relacionamentos instintivos e acesso fácil ao "baseado". A "negritude" da cidade, solidificada por uma relação íntima dos habitantes com as suas raízes africanas, só vem reforçar o carácter jamaicano desta vivência.

No entanto, esta imagem de marca de Salvador também tem o seu lado negativo, ao transformar a vida nos bairros mais turísticos numa amálgama de produtos de marketing, com as suas inevitáveis distorções. Ao ser abordado por um tipo que me queria impingir uma pulseirinha da Nossa Senhora do Bonfim, e após recusar repetidamente a oferta, vi-me forçado a virar-lhe costas e seguir caminho. A reacção do homem foi a seguinte: «Português? Você está me discriminando?». Deixei Salvador com a nítida sensação que aquela gente já tinha visto filmes a mais.

8.4.04

Permanência

Fico feliz por saber que nem tudo mudou na RTP. Podemos ter um logotipo novo, uma sede nova, cenários novos, penteados novos e até cores novas, mas é bom saber que o espírito revolucionário não se alastrou a toda a empresa. Na Páscoa, continuamos a poder desfrutar da Santíssima Trindade televisiva: o "Ben Hur", os "Dez Mandamentos" e uma série italiana sobre "Jesus de Nazaré". Nos últimos dias, ficámos a saber, com pompa e circunstância, que este será o grande ponto de interesse da programação da RTP para este fim-de-semana.

No entanto, mesmo na forma como este trio inabalável é anunciado é possível detectar cortes com o passado. Nas novas instalações do Parque das Nações parece que já ninguém se lembra que há quatro meses, pela altura do Natal, levámos com o mesmo programa. Por outro lado, se esta exaltação significa que já não vamos ter repetição no final deste ano, vou ser forçado a exercer o meu direito à indignação. Acabarem com os "Sete Palmos" ainda vá que não vá, agora um Charlton Heston descido das alturas, só uma vez por ano, é que não pode ser...

7.4.04

Notas Nordestinas III: O português de família

O português que viaja acompanhado para o Nordeste, tem alguma dificuldade em deixar-se seduzir pelo cenário em tons de azul, verde e branco. Normalmente não consegue esquecer a vida que deixou para trás, mas quer oferecer o esquecimento a quem vai com ele. Para o nosso concidadão é difícil em lidar com o facto de não haver nada para fazer por isso encontra substitutos que lhe permitam controlar o sentimento de liberdade onde aterrou. Pensa na organização de excursões, no pagamento de contas, no brasileiro que o tenta enganar, em networking com outros hóspedes, numa tentativa de utilizar o dinheiro como elemento que lhe permita fazer uma ponte entre um mundo idílico mas incompreensível e a luta do dia-a-dia.

Outro elemento estruturante da realidade do português no Nordeste é a presença de filhos com idades dos zero aos dois anos. Uma vez que no resort só os putos a partir dos quatro/cinco anos têm passatempos organizados exclusivamente para eles, o português parece preferir deixar os filhos que se encaixam neste intervalo em casa. Assim, pode passar o dia a empurrar carrinhos de bébé de um lado para o outro, ir pedir pratos de sopa com água quente ao bar do hotel sete vezes ao dia, e envolver-se em discussões com a sogra que levou atrás para poder entregar-lhe as crianças quando lhe apetecesse desenvolver actividades de índole sexual com a mulher, sem nunca se sentir perdido existencialmente, e ao melhor estilo algarvio de Agosto.

Na vertente industrial do norte, há ainda uma terceira via para o equilíbrio emocional: as comunicações móveis. O empresário tem como obrigação chegar à praia e a primeira coisa que faz é ligar para o escritório saber se está tudo em ordem. De seguida passa o telefone à mulher que por sua vez liga para casa para falar com a empregada, e saber como estão os cães. Se esta rotina não se repetir todos os dias, parece que o comboio descarrila.

No fundo, um português ao longe só se distingue do português ao perto pelos acessórios que carrega.

Tempos modernos


Henri Matisse

Hoje em dia, uma mulher nesta pose estaria provavelmente a usar uma depiladora. As agruras da vida moderna transformam a volúpia em algo bem mais terreno.

Distracções

Ontem, num curto percurso que fiz na Marginal, vi três acidentes. Todos me pareceram relativamente violentos. Realmente não há nada como uma temperatura amena e um mar resplandescente para tornar um selvagem, num selvagem domingueiro e distraído.

6.4.04

Notas Nordestinas II: O ritmo

A vida num resort no Nordeste é pautada pelos horários de diversos acontecimentos destinados a nos ocuparem ao longo do dia, se por acaso nos apetecer fazer algo, e direccionados a vários tipos de hóspedes. O público em geral organiza as suas actividades em torno dos horários das refeições, a única altura em que, por imposição fisionómica, somos forçados a mexer-nos. Durante o dia, a comida pode vir até nós, mas à noite somos obrigados a ir até ela, apesar de estarmos no Brasil.

Com esta restrição em pano de fundo, começa a haver uma triagem em função da proveniência da vítima. O público feminino vive em sobressalto com a torrente de entusiásticos chamamentos para actividades "Sveltesse" como o vólei de praia, as aulas de capoeira, a hidro-axé, etc. O português do norte, vive ao ritmo da família alargada que trouxe atrelada de Portugal. O português do centro-sul vive em função dos anseios da sua recém-adquirida e, talvez por isso mesmo, frágil esposa. O resto dos turistas, na sua sapiência, apenas entra em polvorosa com a entrada em cena de reflexos de vida selvagem (iguanas, macacos, etc.) que conseguiram escapar do exterior e se alimentam literalmente das limitações do conhecimento zoológico do Homem pseudo-civilizado. A sua aparição de características indomadas é suficientemente exótica para serem recompensados com restos de refeições.

No meio disto tudo, há quem viva de acordo com os impulsos e maquinações alheias, e que vai anotando coisas num caderninho suspeito.

Notas Nordestinas I: O contexto

Passei uma semana na Praia do Forte, a 60 km de Salvador da Bahia, num resort aparentemente dirigido ao português da classe média para cima, ao brasileiro com filhos, e ao habitante de qualquer outra parte do mundo, da classe que entender (não consegui tipificá-los).

Não tenho por hábito viajar empacotado, mas restrições diversas conduziram-me a esta modalidade, procurando sobretudo de não ter chatices a organizar uma viagem para um sítio que não me interessava particularmente visitar. O que eu encontrei não foi o Brasil, mas sim um sítio com empregados brasileiros, a oito horas de avião da Portela. O Brasil ficou na estrada irregular que acabava na cabine do segurança, à entrada da gated community onde residi durante uma semana. Ocasionalmente também o encontrei, tanto na sua versão natural como urbana, em expedições ao país real que cercava o ambiente controlado do nosso poiso.

Admitindo que o embrulho turístico que nos envolve está tão presente nesta modalidade de viagem, como na versão que consiste em dormir no chão de uma cabana de índios, beber e comer o que eles comem, e fingir que vivo o que eles vivem, devo assumir que este turismo tem uma qualidade: a sinceridade. As pessoas que nos acolhem tentam sinceramente dar-nos o que queremos, e nós queremos sinceramente esquecer-nos da vida do outro lado do Atlântico. Se para isso acontecer tivermos que consumir o Brasil em pequenas doses, que seja, mas nunca com o objectivo final de descobrir o que quer que seja sobre outras culturas. Isso será apenas um bónus. É um turismo que se define por oposição à saturação do dia-a-dia, e não pela procura do exótico. Se é pior ou melhor não sei, e também não me interessa entrar em discussões do tipo turista vs. viajante. Há públicos para tudo, e como esta viagem me ensinou, todos nós podemos ser em determinadas alturas da nossa vida, exactamente isso: um público para tudo.

Está introduzida a ida ao Nordeste. Outros capítulos seguirão.

5.4.04

A marca do macho

Um representante dessa pitoresca espécie diz-me: «Esse tipo é maluco dos cornos! [pausa] Dos cornos, salvo seja. Sem ofensa.» O medo da cornadura é simultaneamente o mito fundador e o tendão de Aquiles da ideologia do macho latino.

De volta

Depois de uma viagem de avião que se iniciou com três horas de atraso e se prolongou por outras oito, depois de ter passado a noite a tentar dormir mais de um quarto de hora seguido apesar de estar sentado na última fila do avião, num banco não reclinável e impudicamente perto do ensurdecedor vácuo sanitário (vulgo o pior lugar possível), regresso a estas paragens. A mediania segue dentro de momentos.